domingo, 31 de outubro de 2010

Só um Mundo de Amor pode Durar a Vida Inteira


Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo.

O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar.

O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.

O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.
 

Miguel Esteves Cardoso, in 'Jornal Expresso' [data da publicação desconhecida]

Cartas de amor

Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras, ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente ridículas.)

Fernando Pessoa
[Que saudades eu tenho de cartas de amor, grandes, ridículas, imensas... ]

Fogos II

Existe, para todos os pensamentos, para todos os amores que, entregues a si próprios, talvez desfalecessem, um cordial singularmente enérgico que é TODO O RESTO DO MUNDO, que está em oposição a ele, e que não vale.

Marguerite Yourcenar, Fogos

Again and again...

sábado, 30 de outubro de 2010

Os dias

Naquele tempo, viver era a melhor coisa do mundo.
Quando nascia o sol as pessoas viam
e os homens eram crianças para além dos montes.
Era uma planície, grande como convém a todas as planícies
e plana porque tudo estava certo.

Naquele tempo tínhamos sido criados e éramos iguais às ervas e às flores.
Tu, tão perfeita que impossível não seres,
tão erguida como um riso de andorinha,
tu estavas ao meu lado, naturalmente fresca,
e não havia motivos nem razões porque sabíamos tudo.

A nossa teologia era o beijo da criança mais próxima
e o deitarmo-nos na terra como folhas da mesma planta,
gratos, reduzidos, conscientes.
Olhando para cima, o céu abria-se e todos os Anjos vinham sentar-se no rebordo
e riam como nós pequenas gargalhadas.
Eu cantava canções mais belas do que não tendo palavras
e ouvias-me em silêncio e de olhos abertos, exactamente como a todos os sons.

Pedro Mário Alles Tamen


Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz?  Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Em tanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro

Eu vinha para a vida, e deram-me dias...

Eu vinha para a vida, e deram-me dias
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.

Fiama Hasse Pais Brandão


Bom dia!

Banda Sonora da Noite...

Porque hoje é sexta...
Porque estamos juntos...
Porque me fazes sentir bem...
Porque te escolhi...
Enfim... porque sim.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Infelizmente...

Não haja medo que a sociedade se desmorone sob um excesso de altruísmo.
Não há perigo desse excesso.

Fernando Pessoa, in Aforismos e Afins

Contei meus anos


Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver 
Daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.
«As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos»
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com
triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial! 

Mário de Andrade

Passa por mim uma borboleta

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

Alberto Caeiro
 

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A Cidade Sonhada

Quando eu tinha nove anos, a Beira era a maior cidade do mundo. As avenidas da minha terra natal eram as mais largas do universo e apenas se esperava que o futuro, triunfal, ali desfilasse. Na Praça do Município cabiam os mais demorados domingos da História, e o Chiveve competia com os mais amazónicos estuários.
A estação ferroviária era de tal dimensão que ali poderiam desembarcar Sophia Loren ou outra artista saída das matinés do Olympia. As mangas do Dondo eram comidas em todo o planeta e, do alto do farol do Macúti, se contemplavam extensões que fariam inveja aos astronautas.
De noite, quando nos chegavam os sons dos batuques do Chipangara, eu e o meu irmão discutíamos, especialistas em lonjuras. Ele assegurava que a floresta Inhaminga era o lugar mais distante do planeta. Eu abria o mapa-mundo e a Beira se confirmava epicentro cósmico. Conformado, adormecia com pena dos meninos que nasciam noutros periféricos lugares.
Certa vez embarquei num avião para rumar a Lourenço Marques. A família veio despedir-se, em lágrimas, ao maior aeroporto do mundo e era como se eu partisse para além do último horizonte. A malta do bairro também foi ao aeroporto e lançou-me um derradeiro olhar, misto de inveja e raiva. Eu ia para território rival, contaminar-me de valores tribais alheios.
Regressei uma semana depois com a suspeita de que havia lugares mais distantes que Inhaminga e cidades maiores que a minha. Nos dias subsequentes, fui colocado de quarentena, punido por confessar que, afinal, outros mundos poderiam haver.
Na altura, eu não sabia que as pequenas cidades vivem sempre o sonho de serem outra coisa. Sonham ser grandes cidades. A minha terra natal era, afinal, um lugar acanhado, onde o mundo chegava em segunda mão. Talvez, por isso, o tamanho dos nossos sonhos fosse reforçado. Talvez, por isso, o meu lugar tivesse ficado maior quando o soube pequeno. Naquele momento, porém, eu estava sendo penalizado como Galileu quando ousou descentrar o cosmos. Deixado ao abandono pelos amigos, fui pescar para os lados do porto. Ao passar pelo Beira Terrrace, uma multidão me alertou: num lugar onde nada sucedia algo trágico acontecera. Estavam retirando das águas os corpos de dois jovens que se tinham suicidado. Um detalhe me chamou a atenção: estavam amarrados pelos pulsos, um arame lhes prendia o fatal destino. Eram dois namorados, impedidos de exercer o seu amor porque pertenciam a raças diferentes.
Sentado na amurada do cais, sem nenhuma vontade de lançar a linha, olhei a cidade e ela, pela primeira vez, me pareceu pequena. Como poderia ser grande um lugar se nele não cabia o amor de dois anónimos adolescentes? Até àquela tarde eu era ainda um moço capaz de sonhar vidas e viver sonhos.
Naquele momento creio ter entendido: a cidade não é um lugar, É a moldura de uma vida, um chão para a memória. Enrolei a linha, e regressei a casa, o poente avermelhando a paisagem e os flamingos trazendo o céu para junto da terra. Então, ganhei a certeza: a cidade em que nasci estava destinada a nascer de mim. Um arame invisível nos prendia os pulsos, a mim e à minha terra natal. Se alguma vez nos atirássemos sobre o abismo não seria para nos afundarmos mas para ganharmos voo, o mesmo voo dos flamingos cruzando os poentes sobre o rio Pungwé.

Mia Couto, in Pensageiro Frequente.


[Este livro, o último de Mia Couto editado no nosso país, já este ano, pela Editorial Caminho, contém um conjunto de textos que, originalmente, foram publicados na revista Índico, uma publicação destinada a ser lida pelos passageiros das Linhas Aéreas de Moçambique. Por isso, todos os textos se destinaram, nas palavras do próprio autor, a «fazer com que o meu país voasse pelos dedos do viajante, numa visita às múltiplas identidades que coexistem numa única nação.». O que agora publico é apenas um desses textos, escrito em Abril de 2007. Todavia, vale a pena ler o livro todo, todos os textos. eu já li e recomendo vivamente.]

Impressão Digital

A Leitora, de Hans Peterszameit

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê Moinhos? São moinhos.
Vê Gigantes? São gigantes.

António Gedeão

A verdade e a mentira


Ao contrário do que geralmente se crê,
por muito que se tente convencer-nos do contrário,
as verdades únicas não existem:
as verdades são múltiplas, só a mentira é global.

José Saramago

Nesta curva...


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O'Neill

Ausência

Quero dizer-te uma coisa simples:
a tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma;
mas que não deixa, por isso,
de deixar alguns sinais -
um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos.
Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto.
São estas as formas do amor,
podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples
também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre
o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória;
e a realidade aproxima-me de ti,
agora que os dias correm mais depressa,
e as palavras ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de mim -
e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Divórcio

«Um divórcio é um triplo salto mortal em câmara lenta: morre em nós o outro, morre essa metade de nós que pertencia ao outro, morre a imagem estável que as pessoas que nos cercam tinham de nós. E tudo isto morre devagar, aos soluços, sem ritos fúnebres nem cerimónias de apaziguamento. Não há flores nem lágrimas nem orações nem homenagens; o enterro dos que um dia foram amantes eternos decorre num tribunal, território de crimes e culpas, lugar dos castigos que aliviam a consciência colectiva. (...)
Já não é uma coisa que acontece só aos outros, mas a banalização do processo só contribuiu para lhe rasgar ainda mais a dignidade: um casal que se divorcia engrossa as estatísticas da precariedade humana, amplia as teses da degeneração e dá novo alento ao cepticismo paternalista.
Os amigos, que haviam aplaudido e admirado humildemente o nascimento da paixão, tornam-se de súbito sábios, omniscientes, catedráticos: ou já tinham previsto tudo, e tratam de nos demonstrar detalhadamente evidências para as quais parece que só nós estávamos cegos, ou não tinham previsto nada e deitam as mãos à cabeça com a nossa inconsciência infantil. Quase nunca resistem à tentação de identificar uma vítima e um algoz, de consolar um ou desculpar outro com recriminações bem-intencionadas que só abrem a ferida. Ninguém tem culpa, o coração permanece, caminhando de negro em negro, à margem da lei do pecado e da redenção. Sobram sobre nós as leis quotidianas desta história de casamento, definidas e aceites como uma forma subterrânea e íntima que na hora da despedida irradia como um segredo inviolável.»

Inês Pedrosa, Nas Tuas Mãos


[O livro relata as memórias cruzadas de três mulheres / três gerações / três formas de encarar a vida, o mundo e as pessoas - Jenny, a avó; Camila, a mãe; e Natália, a filha. Entre o diário da primeira, o álbum de fotografias da segunda e as cartas da terceira revelam-se sucessivos rostos da paixão numa sociedade em mudança. O livro, publicado em 1997, ganhou o Prémio Máxima de Literatura. Para aguçar o apetite e a curiosidade, podem encontrar-se as primeiras 47 páginas do livro aqui.]

Apesar de tudo





Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

As Mãos


Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade. 

Manuel Alegre

Quero apenas cinco coisas...

Quero apenas cinco coisas...
Primeiro é o amor sem fim,
A segunda é ver o outono,
A terceira é o grave inverno.
Em quarto lugar o verão,
A quinta coisa são teus olhos:
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser... sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues a olhar-me.

Pablo Neruda


Já te disse hoje?

imagem recolhida na internet, já não me lembro onde...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Beijo Eterno



Diz tua boca: "Vem!"
"Inda mais!" diz a minha, a soluçar...Exclama
Todo o meu corpo que o teu corpo chama:
"Morde também!"
Ai! Morde! Que doce é a dor
Que me entra as carnes, e as tortura!
Beija mais! Morde mais! Que eu morra de ventura,
Morro por teu amor!
Ferve-me o sangue: acalma-o com teu beijo!
Beija-me assim!
O ouvido fecha ao rumor
Do mundo, e beija-me, querida!
Vive só para mim, só para a minha vida,
Só para o meu amor!

Olavo Bilac

O Tempo

O tempo chega sempre, mas há casos em que não chega a tempo.

Camilo Castelo Branco

No ruído do meu silêncio...

No ruído do meu silêncio
não me perco,
traço pontos entre linhas imaginárias,
os pontos reais,
os pensamentos incorpóreos,
e entre um ponto e outro
anoto as variantes de silêncio que percebo:
o silêncio do vento parado,
o silêncio do ar respirado,
o silêncio do meu coração,
o silêncio da minha alma.

Pedro Faria Lopes

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Levar-se a sério

imagem recolhida aqui
 Eu não me levo muito a sério.
É a melhor maneira de viver.
Aquele que se leva a sério
está sempre numa situação
de inferioridade perante a vida.
Agustina Bessa-Luís

Epigrama gastronómico

Há mil e cem anos
de poesia num só dia
mil e cem palavras
numa só sílaba,
mil e cem páginas
numa linha
-quando abro o livro
do teu corpo, e provo mil
e cem receitas num só
amor.

Nuno Júdice

O beijo, Toulouse-Lautrec

Calendário de Mesa

Bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda-feira, do dia primeiro dia de cada mês e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que a vida não continua, mas apenas recomeça...
Mário Quintana

domingo, 24 de outubro de 2010

Há um tempo...

imagem construída por [MDB]


Fazes-me falta

imagem encontrada aqui

Referência

Quantas vezes te digo
quantas vezes…
que és para mim
o meu homem amado?

O que chega primeiro
e só parte por vezes,
antes de eu perceber
que já tinhas voltado.

Quantas vezes te digo
quantas vezes…
que és para mim
o meu homem amado?

Aquele que me beija
e me possui
me torna e me deixa
ficando a meu lado.

Quantas vezes te digo
quantas vezes…
que és para mim
o meu homem amado?

Que sempre me enlouquece
e só aí percebo
como estava perdida
sem te ter encontrado.

Maria Teresa Horta

imagem encontrada aqui

Um Jeito Estúpido de Te Amar

Eu vou te contar que você não me conhece...
E eu tenho que gritar isso, porque
você está surdo e não me ouve!
A sedução me escraviza a você...

Ao fim de tudo você permanece comigo,
mais preso ao que eu criei e não a mim.
E quanto mais falo sobre a verdade inteira
um abismo maior nos separa...
Você não tem um nome, eu tenho...
Você é um rosto na multidão,
e eu sou o centro das atenções,

mas a mentira da aparência do que eu sou,
e a mentira da aparência do que você é.
Por que eu, eu não sou o meu nome,
e você não é ninguém...

O jogo perigoso que eu pratico aqui,
ele busca a chegar ao limite possível da aproximação.
Através da aceitação, da distância, e do reconhecimento dela.
Entre eu e você existe a notícia que nos separa...
Eu quero que você me veja nua, eu me dispo da notícia.
E a minha nudez parada, te denuncia, e te espelha...

Eu me delato, tu me relatas...
Eu nos acuso, e confesso por nós.
Assim, me livro das palavras
com as quais você me veste.

Fauzi Arap

 

O Amor

imagem retirada daqui
«O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.»

Inês Pedrosa, in Nas Tuas Mãos.

sábado, 23 de outubro de 2010

Desenlaces

Detesto discussões, zangas, rupturas. Mesmo quando me irrito, falo alto (o que me desagrada e de que me arrependo logo a seguir, mas - ainda - é mais forte do que eu), expludo, irrito-me e, dali a meia-hora, está tudo bem.
Isto porque tenho para mim que, apesar de não fazer amigos com facilidade (culpa minha, provavelmente sou demasiado centrada em mim e nos que me rodeiam), acredito que aqueles que tenho são verdadeiros, para todas as ocasiões e incondicionais.
Bem sei que as pessoas mudam ao longo dos anos, que a vida e as circunstâncias nos afastam de alguns e que essa distância tem, por vezes, como consequência, o resfriamento da relação (quando não, mesmo, o esquecimento). Estou consciente de tudo isso, eu própria já vi amigos partirem e já me afastei - voluntária e involuntariamente - de outros.
Apesar de tudo, não consigo ficar indiferente às "rupturas" que acontecem no meu pequenino mundo: aos amores que terminam, aos divórcios que acontecem, às amizades que se desfazem...
É muito triste perceber que o outro, afinal, não corresponde exactamente à imagem que dele criámos; é doloroso constatar que aqueles que estiveram ao nosso lado em momentos de imensa felicidade, são capazes de ser, eles próprios, os causadores da nossa tristeza; é avassalador descobrir que aquele a quem tínhamos por companheiro incondicional, de todas as horas (seja amante, amigo ou simples colega de trabalho), pode, de repente e sem mais explicações, ser cruel, amargo, frio e falso.

imagem retirada daqui
As desilusões dos que nos são próximos fazem estremecer os alicerces da nossa vida. Deixam-nos arrasados, estonteados, perdidos e profundamente magoados. A nós e aos outros, que assistem, impotentes, ao quebrar de um elo que todos julgavam ser feito do mais puro e resistente aço, insensível à mesquinhez, à maledicência, enfim, resistente a tudo.
Inês Pedrosa, no livro Nas Tuas Mãos (que acabei de ler ontem), diz o seguinte a páginas tantas: «Enfrentando a imperfeição, aprendi a perdoar. Olho para a raiz das acções, e concluo que também eu a podia ter cometido. A pior delas.». A pior delas talvez não...
Mas que sejamos capazes de perdoar, ainda quem às vezes, seja muito, muito difícil. E que saibamos avançar, sem amargura, mantendo a sensibilidade e a beleza interior que fazem de nós pessoas especiais. 
Porque, mesmo que se quebrem alguns, há sempre elos da corrente que ficam, bem agarrados. Alguns deles para sempre. E, só por esses, vale mesmo a pena olhar em frente.

O efeito do Amor

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Diz-me, amor, como te sou querida...

imagem recolhida aqui
Diz-me, amor, como te sou querida,
Conta-me a glória do teu sonho eleito,
Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,
Arranca-me dos pântanos da vida.

Embriagada numa estranha lida,
Trago nas mãos o coração desfeito,
Mostra-me a luz, ensina-me o preceito
Que me salve e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,
Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,
Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,
Como se fosse, amor, toda a frescura
Das cristalinas águas da montanha!

Florbela Espanca, in A Mensageira das Violetas.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Quando

Quando eu descobrir o segredo
Da neblina cinzenta
Que torna a agua barrenta
E sem perdão me esmaga o peito...
E quando se levantar de repente
A névoa que cobre o rio
Que gela tudo de frio
E escurece a corrente...
Longa se torna a espera
Na névoa que cobre o rio
Lenta vem a galera
Na noite quieta de frio
E quando...
E quando eu apanhar finalmente
O barco para a outra margem
Outra que finde a viagem
Onde se espere por mim
Terei, terei mais uma vez a força
Para enfrentar tudo de novo
Como a galinha e o ovo
Num repetir de desgraças...
Longa se torna a espera
Na névoa que cobre o rio
Lenta vem a galera
Na noite quieta de frio
E quando...
E quando...


A minha cidade favorita



Este livro é um clássico, muitas vezes reimpresso como o livro sobre Veneza. Nele Jan Morris entrelaça o H grande da História com o apuradíssimo sentido de observação para o h pequeno das histórias do quotidiano.
Nas palavras de Paul Theroux, outro dos grandes escritores viajantes do nosso tempo, Morris é «uma das maiores escritoras descritivas da língua inglesa». Por isso ele lhe chama também «a travelling genius».
É numa penetrante inquietação de viagem que a autora, percorrendo o mundo para o interpretar, tenta revelar o enigma dos lugares que visita tal como se propõe desvendar o seu próprio enigma interior. «Por vezes, rio abaixo, quase penso que o consigo; mas então a luz muda, o vento vira, uma nuvem atravessa-se à frente do sol e o significado de tudo isto volta uma vez mais a escapar-me.»

[Escrito na contracapa do livro Veneza, de Jan Morris, Tinta da China, Lisboa, 2009.]

imagem recolhida aqui

A não esquecer. Jamais.

Moulin Rouge

Não será o meu filme de eleição. Mas é um dos meus favoritos, sobretudo no que respeita a musicais; talvez por isso, tenho algumas músicas da banda sonora no carro e ouço amiúde, com muito gosto.
O filme passa-se em Paris, em 1899, num dos maiores ícones da boémia parisiense, a casa de espectáculos Moulin Rouge. Conta a história de um jovem e idealizador poeta Christian (Ewan McGregor) que desafia o pai e vai viver no boémio bairro de Montmartre. Lá, ou melhor, no cabaré Moulin Rouge, apaixona-se pela famosa cortesã, a exuberante e sedutora Satine (Nicole Kidman). Junto a um grupo de artistas, Christian precisa encontrar Satine para convencê-la a montar uma peça teatral em que será o escritor.
O poeta encontra, no entanto, a concorrência de um patético e egocêntrico Duque (Richard Roxburgh), que fará de tudo para conquistar a sua amada, nem que isso implique gastar muito dinheiro, fazer ameaças e até matar.
Do cineasta Baz Luhrmann, que também realizou Romeu e Julieta e Vem Dançar Comigo, Moulin Rouge conta com cenários elaborados, figurinos fantásticos e uma história com diálogos compostos por letras de canções que marcaram época na música pop. Nele podem encontrar-se trechos das músicas de Beatles, U2, Madonna, Elton John, Fatboy Slim, Christina Aguillera, Beck, Ozzy Osborne e até de David Bowie...
Foi vencedor de dois óscares: o de melhor Direcção Artística e o de Melhor Guarda-Roupa.
A ver, definitivamente. E a rever também.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sei de cor

Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
e o mundo nos leve pra longe de nós,
e que um dia o tempo pareça perdido
e tudo se desfaça num gesto só...


Eu vou guardar cada lugar teu,
ancorado em cada lugar meu,
e hoje apenas isso me faz acreditar
que eu vou chegar contigo
onde só chega quem não tem medo de naufragar...

Mafalda Veiga, Cada Lugar Teu

[A banda sonora desta noite...]


Quem Morre?


Morre lentamente
quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos,
quem não muda de marca,
não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
quem faz da televisão o seu ídolo.
Morre lentamente
quem evita uma paixão,
quem prefere o preto no branco
e os pingos sobre os "is"
em detrimento de um redemoinho de emoções,
justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
sorrisos dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.

Morre lentamente
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,
quem não se permite, pelo menos uma vez na vida,
fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente
quem não viaja,
quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
quem passa os dias a queixar-se
da sua má sorte ou da chuva incessante.

Morre lentamente
quem abandona um projecto antes de o iniciar,
não pergunta sobre um assunto que desconhece
ou não responde quando o indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,
recordando sempre que estar vivo
exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar.
Somente a perseverança fará com que conquistemos
um estágio esplêndido de felicidade.

Pablo Neruda