Começar por amar a impressão de um só corpo. Mais tarde buscar em vários, muitos, um só corpo já das mãos e dos lábios conhecido. Depois amar por partes, escolhendo, as mais das vezes, a pequena imperfeição onde o prazer se acende. Tudo isto longe, muito longe do amor.
É que doem tanto as primeiras paixões que se enfurece justamente. O que se encontra é outra coisa, talvez melhor, talvez, mas não o que se tinha mais que tudo preferido. Os dedos a perderem-se nos cabelos, por exemplo. Só isso? A paixão tem de doer, é isso que quer dizer. Tudo isto muito tempo, porque mesmo assim não se desiste facilmente.
E depois, ao perder a âncora, a paixão faz volteio dentro da cabeça. Então vem a saudade que lhe enche o peito e vive só de sombras e fantasmas com insónia. É de uma fidelidade triste porque sem motivo. Dorme-se de menos por se sonhar demais e é tudo.
Por isso se desespera e se procura sem perder mais tempo, porque já se vai atrasado, aquilo que se perdeu naquilo que em volta há. Pode demorar muito tempo e nunca se ir encontrar. Pode apegar, pegar, apanhar, mas não mais apaixonar. Apaixonar é verbo passado, primitivo. Vai-se de corpo em corpo à procura do mesmo e é sempre outro e diferente e dá tonturas e dá trabalho e causa dor, não nele, imune, mas nos outros, que se deixam embaraçar, abrasar, enganar, porque talvez também se queiram enganar.
E chega o tempo de preferir a cara deste, e as mãos desta, e o corpo-tronco daquele ou tudo junto de repente. É o tempo de analisar tudo minuciosamente, partir, despedaçar, ver por dentro, dar a volta sem pretender sequer voltar a reparar. E pode-se ficar por aqui e pode-se até voltar atrás, mas já não da mesma maneira, porque para voltar só vale a pena por uma pior. É o vício a descobrir-se na repetição atraente, irrecusável mesmo, com cenas de ódio pelo meio a intervalar. Tudo isto mais longe do amor, se for possível. O amor sempre mete muito medo.
Mais vale aquela pequena imperfeição onde o desejo se acende e arde e leva consigo o tempo em frente. Amanhã o abismo, mas só amanhã. Como recusar, o que vem assim sem se saber porquê? Como cansar o que prefere morrer a sossegar? Para quê afastar o que se dá no presente e o enche nem que seja no bastante momento em que se está? Não há resposta e é de propósito que a não há. É preciso ficar doente para se curar e quanto mais doente melhor e pior ao mesmo tempo. E pode-se ficar assim ou querer voltar ao começo, só que já não o há, é só pequena superstição a aliviar a alma brevemente de tanta ilusão que só serve para atrapalhar.
Pode-se ficar frio no corpo e quente na cabeça. Ou frio no corpo e trazer o corpo a escaldar. Pode-se querer mais do que tudo perder a cabeça ou deitar o corpo pela janela do sétimo andar. Pode-se demais, é esse o problema. E se todos se portam mal já não vale a pena portarmo-nos mal, não será assim? Pode ser. E depois há a idade a trazer cabelos sem qualquer cor com a cara frente ao espelho sem se querer acreditar. E o medo cresce sempre. E o prazer precisa de crescer ainda mais para o abafar. E o corpo começa a doer e a adoecer e a recusar servir o que quer que seja, a não prestar nem para comer, quanto mais.
E pode-se ficar por aqui, ou recuar. Mas não é possível recuar, ou simplesmente então acabar de livre vontade ou imperiosa necessidade por já não se aguentar. É sempre demasiado tarde para acabar. Não vale a pena acabar.
E depois dá-se o milagre. O que pressupõe que tudo o resto fica tal como está, e como é perfeito, insuficiente, as mais das vezes repelente. O milagre acontece ou não e é tudo. Nem é natural que aconteça. É por isso que é milagre. O amor pode chegar. Mas donde vem? Para onde vai? Quando chega vem para quê, o amor? Grande e inútil milagre este sem resposta e é de propósito que não tem resposta.
Há quem não acredite e está bem assim. E há quem só acredite e ainda é melhor assim. Como em tudo é preciso crer para ver. Mas não é preciso, menos ainda obrigatório, é uma graça que só vem se quiser, quando quiser e pelo tempo que quiser e é o melhor de tudo o que possa acontecer. E o prazer é a recompensa que acompanha o bom trabalho, entre todos o mais difícil, agora perto, muito perto, o trabalho do amor.
Pedro Paixão