segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Crer para ver.


Começar por amar a impressão de um só corpo. Mais tarde buscar em vários, muitos, um só corpo já das mãos e dos lábios conhecido. Depois amar por partes, escolhendo, as mais das vezes, a pequena imperfeição onde o prazer se acende. Tudo isto longe, muito longe do amor.

É que doem tanto as primeiras paixões que se enfurece justamente. O que se encontra é outra coisa, talvez melhor, talvez, mas não o que se tinha mais que tudo preferido. Os dedos a perderem-se nos cabelos, por exemplo. Só isso? A paixão tem de doer, é isso que quer dizer. Tudo isto muito tempo, porque mesmo assim não se desiste facilmente.

E depois, ao perder a âncora, a paixão faz volteio dentro da cabeça. Então vem a saudade que lhe enche o peito e vive só de sombras e fantasmas com insónia. É de uma fidelidade triste porque sem motivo. Dorme-se de menos por se sonhar demais e é tudo.

Por isso se desespera e se procura sem perder mais tempo, porque já se vai atrasado, aquilo que se perdeu naquilo que em volta há. Pode demorar muito tempo e nunca se ir encontrar. Pode apegar, pegar, apanhar, mas não mais apaixonar. Apaixonar é verbo passado, primitivo. Vai-se de corpo em corpo à procura do mesmo e é sempre outro e diferente e dá tonturas e dá trabalho e causa dor, não nele, imune, mas nos outros, que se deixam embaraçar, abrasar, enganar, porque talvez também se queiram enganar.

E chega o tempo de preferir a cara deste, e as mãos desta, e o corpo-tronco daquele ou tudo junto de repente. É o tempo de analisar tudo minuciosamente, partir, despedaçar, ver por dentro, dar a volta sem pretender sequer voltar a reparar. E pode-se ficar por aqui e pode-se até voltar atrás, mas já não da mesma maneira, porque para voltar só vale a pena por uma pior. É o vício a descobrir-se na repetição atraente, irrecusável mesmo, com cenas de ódio pelo meio a intervalar. Tudo isto mais longe do amor, se for possível. O amor sempre mete muito medo.

Mais vale aquela pequena imperfeição onde o desejo se acende e arde e leva consigo o tempo em frente. Amanhã o abismo, mas só amanhã. Como recusar, o que vem assim sem se saber porquê? Como cansar o que prefere morrer a sossegar? Para quê afastar o que se dá no presente e o enche nem que seja no bastante momento em que se está? Não há resposta e é de propósito que a não há. É preciso ficar doente para se curar e quanto mais doente melhor e pior ao mesmo tempo. E pode-se ficar assim ou querer voltar ao começo, só que já não o há, é só pequena superstição a aliviar a alma brevemente de tanta ilusão que só serve para atrapalhar.

Pode-se ficar frio no corpo e quente na cabeça. Ou frio no corpo e trazer o corpo a escaldar. Pode-se querer mais do que tudo perder a cabeça ou deitar o corpo pela janela do sétimo andar. Pode-se demais, é esse o problema. E se todos se portam mal já não vale a pena portarmo-nos mal, não será assim? Pode ser. E depois há a idade a trazer cabelos sem qualquer cor com a cara frente ao espelho sem se querer acreditar. E o medo cresce sempre. E o prazer precisa de crescer ainda mais para o abafar. E o corpo começa a doer e a adoecer e a recusar servir o que quer que seja, a não prestar nem para comer, quanto mais.

E pode-se ficar por aqui, ou recuar. Mas não é possível recuar, ou simplesmente então acabar de livre vontade ou imperiosa necessidade por já não se aguentar. É sempre demasiado tarde para acabar. Não vale a pena acabar.

E depois dá-se o milagre. O que pressupõe que tudo o resto fica tal como está, e como é perfeito, insuficiente, as mais das vezes repelente. O milagre acontece ou não e é tudo. Nem é natural que aconteça. É por isso que é milagre. O amor pode chegar. Mas donde vem? Para onde vai? Quando chega vem para quê, o amor? Grande e inútil milagre este sem resposta e é de propósito que não tem resposta.

Há quem não acredite e está bem assim. E há quem só acredite e ainda é melhor assim. Como em tudo é preciso crer para ver. Mas não é preciso, menos ainda obrigatório, é uma graça que só vem se quiser, quando quiser e pelo tempo que quiser e é o melhor de tudo o que possa acontecer. E o prazer é a recompensa que acompanha o bom trabalho, entre todos o mais difícil, agora perto, muito perto, o trabalho do amor.

Pedro Paixão

and the winner is...



sábado, 26 de fevereiro de 2011

Dia de.


Dia de escrita, dia de flores.
Dia de arrumação, dia de projectos.
Dia de memórias, dia de esperanças.
Dia de tudo, dia de nada.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Anjos mulheres

As mulheres voam
como os anjos
Com as suas asas feitas
de cristal de rocha da memória
Disponíveis
para voar
soltas...
Primeiro
lentamente uma por uma
Depois,
iguais aos pássaros
fundas...
Nadando,
juntas
Secreta a rasar o
chão
a rasar a fenda
da lua
no menstruo
por entre a fenda das pernas
Às vezes é o aço
que se prende
na luz
A dobrarmos o espaço?
Bruxas
pomos asas em vassouras
de vento
E voamos
Como as asas
lhe cresciam nas coxas
diziam dela
que era um anjo do mar
Rondo alto,
postas em nudez de ombro
se pernas
perseguindo,
pelos espaços,
lunares
da menstruação
e corpo desavindo
Não somos violência
mas o voo
quando nadamos
de costas pelo vento
até à foz do tempo
no oceano denso
da nossa própria voz
Sabemos distinguir
a dormir
os anjos das rosas voadoras
pelo tacto?
Somos os anjos
do destino
com a alma
pelo avesso
do útero
Voamos a lua
menstruadas
Os homens gritam
- são as bruxas
As mulheres pensam
- são os anjos
As crianças dizem
- são as fadas
Fadas?
filigrama cintilante
de asas volteando
no fundo da vagina
Nadamos?
De costas,
no espaço deste século
Mudar o rumo
e as pernas mais ao
fundo
portas por trás
dobradas pelos rins
Abrindo o ar
com o corpo num só golpe
Soltas,
voando
até chegar ao fim
Dizem-nos
que nos limitemos ao espaço
Mas nós voamos
também
debaixo de água
Nós somos os anjos
deste tempo
Astronautas,
voando na memória
nas galáxias do vento...
Temos um pacto
com aquilo que
voa
- as aves
da poesia
- os anjos
do sexo
- o orgasmo
dos sonhos
Não há nada
que a nossa voz não abra
Nós somos as bruxas da palavra

Maria Teresa Horta
 

Ritos.



Se vieres, por exemplo, às quatro horas da tarde, a partir das três horas começo a ser feliz. Quanto mais se aproximar a hora, mais feliz me sentirei. Às quatro horas perturbo-me e inquieto-me; descobrirei, assim, o valor da felicidade! Mas se vieres seja quando for, nunca sei a que horas hei-de ataviar o coração… São precisos ritos.

Antoine de Saint-Exupery, O Principezinho

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Ditos



As pessoas não são inteiramente boas ou más, ásperas ou afectuosas. Não nascem com uma predisposição natural para uma ou outra coisa. As pessoas convertem-se, moldam-se, expandem-se ou refugiam-se. Tão simples quanto isso.
A faceta que se vislumbra em cada uma delas é proporcional àquilo que nelas se alimenta. Todos carregamos a perfídia e a ternura. Ali, em simultâneo. E todos somos aquilo que mais alimentarem em nós. 
A velha questão de sempre: reciprocidade.
E a lógica do retorno. Só isso.
E é isso mesmo, Maria.

A grande diferença

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A meiguice



As pessoas passam metade da vida a maltratar-se umas às outras, por medo e necessidade de afirmação. É uma actividade triste e profundamente inútil. Já não tenho vergonha de ser meiga; foi uma das coisas que me levaste quando morreste.

Inês Pedrosa, Nas Tuas Mãos.

To be.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

To walk away.



For a moment, I didn't know where I was. And for a split second, the thought crossed my mind that he really didn't want me - that it was easy to walk away.

Fancesca, As Pontes de Madison County.


Os anos = unidade da recordação

10 de Dezembro

O ócio torna lentas as horas e velozes os anos. A actividade torna rápidas as horas e lentos os anos. A infância é a actividade máxima, porque ocupada em descobrir o mundo na sua diversidade.

Os anos tornam-se longos na recordação se, ao repensá-los, encontrarmos numerosos factos a desenvolver pela fantasia. Por isso, a infância parece longuíssima. Provavelmente, cada época da vida é multiplicada pelas sucessivas reflexões das que se lhe seguem: a mais curta é a velhice, porque nunca será repensada.

Cada coisa que nos aconteceu é uma riqueza inesgotável: todo o regresso a ela a aumenta e acresce, dota de relações e aprofunda. A infância não é apenas a infância vivida, mas a ideia que fazemos dela na juventude, na maturidade, etc. Por isso, parece a época mais importante, visto ser a mais enriquecida por considerações sucessivas.

Os anos são uma unidade da recordação; as horas e os dias, uma unidade de experiência.

Cesare Pavese, ofício de viver - diário (1935-1950)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Noite de mimo

Despedida eterna

Zé Luis: começámos esta tua última viagem (tu gostavas de viagens) na cama 56 dos serviços de cirurgia 1 do Hospital de Santa Maria. Lia-te poesia e um dia parámos neste poema da Sophia de Mello Breyner:

”Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A Força dos teus sonhos é tão forte,
Que tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias”.

Assim foi.
No teu visionário e intenso mundo, a voracidade de um cancro traiçoeiro não te consumiu a alegria, a coragem, a liberdade.
Entraste pela morte dentro de olhos abertos. O mundo que habitavas era rico de ideias, de sonhos, de projectos, de honradez e carinho. Percebemos o que ia acontecer quando no fundo do teu olhar sorridente brilhava uma estrela de tristeza. Quando te deixava ao fim do dia na cama 56 e te trazia no coração enquanto descia a Alameda da Cidade Universitária a respirar o teu ar da Universidade, das aulas e dos alunos que adoravas, do futuro em que acreditavas sempre.
Foste intolerável com a corrupção, com os cobardes e oportunistas. Não uportavas facilidades. Resististe à sordidez, à subserviência, à canalhice disfarçada de respeitabilidade e morreste como sempre viveste - livre.
Uma palavra para aqueles que te acompanharam nesta última viagem: para os melhores médicos do mundo, para as melhores equipas de enfermagem e de apoio, num exemplo de inexcedível dedicação ao serviço médico público. Vivi com emoção diária o carinho com que te cuidaram.
Uma palavra de gratidão sentida para o Professor Luis Costa e para o Paulo Costa. E para um velho amigo de sempre o Miguel.
Também para Laura e para o Jorge e para a minha mãe e toda a família que nunca te deixou.
Por fim uma palavra para aqueles amigos que inventaram uma barricada contra a morte no serviço de cirurgia 1, cama 56, e te ajudaram a escrever, a pensar, a continuar a trabalhar: o João Gama, o João Pereira e senhor Albuquerque, cada um à sua maneira.
Suspiraste nos meus braços pela última vez cerca da 1,15 da madrugada do dia 14 de Maio.
Vai faltar-me a tua mão a agarrar na minha enquanto passeávamos e conversávamos.
Provavelmente uma saudade ridícula, perante a força do exemplo e da obra que nos deixaste e me foi trazido por todos aqueles que te homenagearam – a quem deixo a tua eterna gratidão.
Tenham a coragem de continuar.

[16.05.2010 - Maria José Morgado]
lido aqui


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

E por vezes...


















E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.



David Mourão Ferreira

Legenda


Há tanto tempo à espera e eu sem dar por ti...


quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Teu corpo principia

Dou-te um nome de águapara que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol – verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

O vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.


António Ramos Rosa

As coisas mais simples.

As coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras.


Nuno Júdice

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011


















Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

Pablo Neruda.

Violoncelo

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trémulos astros...
Soidões lacustres...
– Lemos e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
– Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo!

Camilo Pessanha

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

We will always have Paris

Torre Eiffel

Sacre Coeur

Moulin Rouge

Louvre

Cemitério de Montmartre

Grand Palais

Montmartre

D'Orsay

Notre Dame
Saint Germain des Prés

Champs Elisées

Boulangerie

Le Seine

Publicidade parisiense.

Je suis la femme. C'est vous l'objet.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Foto do Ano.

Foto de Jodi Bieber






18 anos. Afegã, de nome Bibi Aisha. O nariz e as orelhas foram-lhe cortados pelo marido de quem ela acabou por fugir.
A fotografia foi tirada para a Time, onde foi publicada na capa, em Julho de 2010. Venceu o prémio de Foto do Ano de 2010 da World Press.

A coragem dos egípcios



é em dias assim

que eu suspendo a descrença.

e, como toda a gente da minha idade, recordo o dia em que, com 10 anos, acordei com a minha mãe a dizer 'houve um golpe de estado' e saltei na cama a celebrar uma coisa que nem sabia bem o que era.

pode correr mal? pode, pode correr péssimo. mas agora, por um dia, por uns dias, vamos pensar nisto: a rua -- a rua, e não tanques, não armas, não soldados nem cliques nem conspirações de palácio nem manobras internacionais, mesmo se tudo isso teve o seu papel nisto -- fez cair um ditador. não me lembro de uma coisa assim tão deslumbrante ter acontecido no meu tempo de vida, sob os meus olhos, em directo. a coragem não é a mais admirável das qualidades, mas anda lá perto, e a coragem dos egípcios é tanto mais admirável quanto sucede num lugar onde nós, os ocidentais, tinhamos decretado um deserto de valor e sentido, um lugar que tínhamos abandonado simbolicamente à sua sorte -- a sorte de ser um tampão, um sítio cego, sem janelas.

nós e o exército somos um, cantavam eles na praça da libertação. nós e os egípcios somos um. hoje, amanhã, e, com sorte, nos dias todos. e se correr mal e deixarmos de ser, sabemos isto: que um dia fomos. essa noção é tudo o que é preciso. também precisamos de lirismo, de vez em quando. os egípicios provam-nos isso mesmo: o lirismo pode mover montanhas.

Fernanda Câncio, blogue jugular, 11.02.2011

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A música da noite

Equilíbrio precário

Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.
- Como quereis o equilíbrio?



David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Paixões. As humanas, que as divinas são outra conversa.

Foto de Robert Doisneau
Eu considero inteligente o homem que em vez de desprezar este ou aquele semelhante é capaz de o examinar com olhar penetrante, de lhe sondar por assim dizer a alma e descobrir o que se encontra em todos os seus desvãos. Tudo no homem se transforma com grande rapidez; num abrir e fechar de olhos, um terrível verme pode corroer-lhe as entranhas e devorar-lhe toda a sua substância vital. Muitas vezes uma paixão, grande ou mesquinha pouco importa, nasce e cresce num indivíduo para melhor sorte, obrigando-o a esquecer os mais sagrados deveres, a procurar em ínfimas bagatelas a grandeza e a santidade. As paixões humanas não têm conta, são tantas, tantas, como as areias do mar, e todas, as mais vis como as mais nobres, começam por ser escravas do homem para depois o tiranizarem.
Bem-aventurado aquele que, entre todas as paixões, escolhe a mais nobre: a sua felicidade aumenta de hora a hora, de minuto a minuto, e cada vez penetra mais no ilimitado paraíso da sua alma. Mas existem paixões cuja escolha não depende do homem: nascem com ele e não há força bastante para as repelir. Uma vontade superior as dirige, têm em si um poder de sedução que dura toda a vida. Desempenham neste mundo um importante papel: quer tragam consigo as trevas, quer as envolva uma auréola luminosa, são destinadas, umas e outras, a contribuir misteriosamente para o bem do homem.

Nikolai Gogol, Almas Mortas

Preferences


I avoid looking back. 
I prefer good memories to regrets.

Grace Kelly

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Tempo da travessia

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa

 

Há pessoas...


... às quais devia ser permitido verem todos os seus desejos tornarem-se realidade.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes.

Alexandre O'Neill


Li uma vez que...



... os mais ínfimos detalhes são responsáveis
pelas mais notáveis diferenças.

lido aqui.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A banda sonora da minha noite...


Noite de mimo.
Assim sendo, fico.

O Casamento

Desenha-me uma árvore, desenha-me o sol, um sol a sorrir, com sobrancelhas e nariz, desenha-me nuvens com cerejas penduradas.
Desenha-me uma vaca. Ou um gato. Ou um elefante, já agora. Uma casa com um quintal. Isso: desenha-me uma casa com um quintal e nós dois à janela. Conta-me uma história. Não te vás embora ainda, conta-me uma história que acabe bem, com pessoas felizes para sempre. Mente-me. Faz o favor de me mentires desde que sejam mentiras que eu goste. Dá-me uma colher de compota, ervilhas com ovos escalfados, um beijinho na testa. Não custa muito, um beijinho na testa, de modo que a marca do baton fique na pele. Depois diz-me

- Podes ir

e eu vou, não me arrasto por aqui a maçar-te, prometo, a ler o jornal, a ocupar espaço, a encher tudo de fumo, a deixar cinza no chão. Aprendi a perceber quando as coisas acabam e, depois de onze anos de casados, é assim tanto pedir-te que desenhes uma árvore? Não te incomodes com o papel, qualquer papel serve, nem vale a pena procurares uma caneta, usa o lápis dos olhos, aquele com que, ao princípio, me sujavas o colarinho. Até nem me rala que ponhas a árvore, ou o sol, ou as nuvens no colarinho, se me perguntarem explico

- Foi a minha ex-mulher

e as pessoas compreendem. Não faças essa cara, compreendem, por que carga de água não haviam de compreender?
Não comentam

- Olha aquele com uma vaca na camisa

aprovam. Não acreditas em mim?
O problema é que nunca acreditaste em mim, a mesma conversa desde o princípio

- És maluco

e se calhar sou maluco, sei lá, que diferença faz se acabou? E uma vaca na camisa, o que tem? Quem diz vaca diz elefante, e vaca ou elefante o que tem? O mais natural é que nem reparem, conforme não repararam na falta de aliança no meu dedo. Pode ser que uma colega

- A tua aliança?

eu

- Perdi-a

ela

- Perdes tudo

e a voltar ao microscópio, desinteressada. Em todo o caso

- Perdes tudo

injusto, às vezes esqueço-me do guarda-chuva, como toda a gente, mas

- Perdes tudo

um exagero. Um exagero e uma mentira.
Perdi-te a ti e chega. Se me contares uma história que acabe bem, e acho que não custa contares uma história que acabe bem, ajuda. Não te levantes, por favor, espera um bocadinho que eu já saio, tenho a mala à porta, é só pegar nela, meter-me no carro e não tornas a pôr-me a vista em cima. Nem olho para as janelas, garanto, à procura de uma cara que não vai aparecer nos caixilhos, de uma mãozinha que não vai acenar, com esse verniz de unhas que me excita.
Desculpa confessar isto, que aliás neste momento não tem importância, mas excita-me, não leves a mal. Há outras partes tuas que me excitam, por exemplo aqui, não te zangues que não é uma carícia, é uma explicação, por exemplo aqui também e não vale a pena sacudires-me, sei perfeitamente que não sou desejado. Recordas-te de quando eu te lambia a orelha e tu

- Faz-me cócegas

mas sem tirares a orelha, a apertares-me a perna com mais força ainda? Consentes que te lamba uma última vez, uma vez pequenina, lambo e tiro logo, nem me sentes? Assim ao de leve, olha, a concha do ouvido, o lóbulo, o pescoço neste sítio, onde o cabelo tem caracolinhos pequeninos, lá estás tu a fechar os olhos e a respirar mais depressa, lá estão os teus ombros a tremerem. Tão bom quando os teus ombros tremem, quando te lamentas

- Estou toda arrepiada

e giras a cabeça, isso, para que te acaricie a nuca, desça um bocadinho ao longo do pescoço, te passeie no ombro devagar, estás a ver, toque ao de leve com a ponta do indicador, na ponta do peito que começa a ficar duro, que cresce, qual a razão da ponta do peito crescer, dos joelhos

- Não pares

começarem a afastar-se, da minha palma subir pelo interior da perna até este sítio, onde tudo mais tenro, mais dócil, mais suave, volta-te para este lado, desenha-me a tal árvore no peito, com a boca, vai descendo, se quiseres, que eu não levo a mal, não há motivo para levar-te a mal, que bom pegar no teu cabelo e guiar-te a cabeça, eu puxo o fecho éclair, não te incomodes, eu desaperto o cinto, o raio da fivela há-de obedecer, chama-me maluco, chama-me doido, chama-me fofinho, não pares, por amor de Deus não pares, mais depressa, assim, não mordas que aleija, quantas vezes é preciso dizer que aleija, raios te partam, vamos lá a fazer isso com jeitinho, como deve ser, vamos lá a fazer isso como uma maluca, uma doida, uma fofinha, ai tão lindo, estamos quase no fim, que árvore tão bem desenhada, que nuvem com cerejas penduradas, que gato, que elefante, que história bonita com pessoas felizes para sempre que me estás a contar, aguenta um segundo que tenho de ir à cozinha beber água e já volto, vou num pé e venho no outro, nem dás por isso, depois pões-me outra vez a aliança no dedo, a aliança pode esperar, o que interessa agora, que se lixe a aliança, mesmo sem aliança sou teu marido, tens aqui um sinal esquisito, umas rugas, de expressão uma ova, umas rugas, não te zangues se te confessar que envelheces sem graça, pede uma piza pelo telefone que o fogão não é o teu forte, há onze anos que engulo o que me dás sem um protesto, comemos uma piza, depois sentamo-nos no sofá, depois tu vês televisão e eu aborreço-me, depois tiras a minha roupa da mala e guardas tudo, como deve ser, nas gavetas, depois, antes de te deitares, não laves os dentes com a minha escova que detesto o teu hálito, e sobretudo pára imediatamente de me desenhares vacas na camisa com o lápis dos olhos, vão pensar que me passei dos carretos e fica sabendo que a palavra maluco, a partir de agora, desapareceu desta casa.

António Lobo Antunes
Visão, 20 de Janeiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

One day...

Bom dia!


Manhã sem despertador, sem correria, sem saída à pressa.
Manhã de ficar até mais tarde da cama, de saborear o sol a entrar pela janela e para tomar o pequeno-almoço calmamente, saboreando cada coisa até ao fim.
Fim-de-semana, naturalmente...