terça-feira, 30 de novembro de 2010

Mãos postas

de Carlo Pautasso
Entrega-se ao dia que nasce, ouvindo
as aves que emergem da névoa com o seu canto;
e a maré de sensações que acompanha
a madrugada sobe pelo seu corpo,
submergindo o lodo dos sonhos
com a espuma luminosa do primeiro
sol. Mas reza ainda ao deus
que se perdeu na areia solitária
do tempo; e as suas pálpebras caídas
guardam as imagens que pertencem
à noite, como se precisasse delas,
ou como se esperasse que alguém abra
a janela, e lhe diga ao ouvido
as palavras limpas da bruma matinal,
libertando-lhe as mãos para o tecido
do amor.

Nuno Júdice

O Infante















Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português,
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal.

Fernando Pessoa
[Sempre, mas particularmente hoje, exactamente 75 anos após a sua morte. In memoriam.]

A solidão

Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é,
Sempre vivi só,
Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós.

José Saramago 
O Ano da Morte de Ricardo Reis

domingo, 28 de novembro de 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

As Sem Razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.


Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

Competing

encontrado aqui

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Nós

Ficámos nós os dois, parados, de mão dada.
Como podem só os dois governar um barco?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
Tornamo-nos reais, e de maneira, à proa.
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa
Aparentes senhores de um barco abandonado,
Nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem
Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa alheio aos meus sentidos.
Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
A eternidade é nossa , em madeira esculpidos!

David Mourão Ferreira

Busca incessante

Descobrir profundidade em tudo, eis uma qualidade incómoda: faz com que se gastem incessantemente os olhos e que por fim se encontre sempre mais do que aquilo que se desejava.

Friedrich Nietzsche


terça-feira, 23 de novembro de 2010

Julgamentos

imagem recolhida aqui

É triste e redutor julgarmos os outros por aquilo que nós somos. Mas ainda mais triste - e infinitamente mais redutor - é julgarmos que somos outra coisa que não aquilo que exactamente somos.

A banda sonora da minha noite...

...

To do. Always. [#1]

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Esperanças

Não deram resultado todas as esperanças
que eu tinha posto no dia de hoje.
Mas amanhã se Deus quiser
logo de manhã bem cedinho
todas as minhas esperanças começam outra vez
à procura da minha vez.

Almada Negreiros,
"As quatro manhãs"

O mar é longe, mas somos nós o vento















O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Pedro Mário Alles Támen

Chove...

Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira

domingo, 21 de novembro de 2010

A escala do amor

«Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.
imagem de Jindrich Streit
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa. O onanista é abjecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.
As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio acto em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois "amo-te" ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma.
É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar.»

Bernardo Soares, Livro do Desassossego.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A memória do coração


Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te.

William Shakespeare

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

casa

«O meu esconderijo de eleição sempre foi a minha casa. Nenhuma sensação se assemelha à tranquilidade que me dá, ao final do dia, fazer rodar a chave na fechadura e abrir a porta daquele espaço muito meu, quase sempre submerso em absoluto sossego. Assim que ponho um pé no chão, quase ouço em surdina um ligeiro reboliço, como se as minhas coisas bisbilhotassem entre si o meu ansiado regresso. Gosto da certeza de tornar a casa, da segurança de voltar ao meu ponto de partida.
A minha casa continua a revelar-me, todos os dias, pedacinhos de chão, paredes e tecto que eu, empurrada pela pressa com que os ponteiros percorrem o relógio, nunca tinha tido tempo para ver antes. Cada ladrilho conta-me um segredo, cada rodapé devolve-me à boca o sabor de um beijo roubado, cada esquina por onde passo surpreende-me com uma gargalhada. Quando regresso a casa, todos os dias encontro janelas por abrir.
Em casa sinto-me por dentro de mim. Conheço, mesmo de luz apagada, todos os caminhos que os seus corredores rasgam, veias por onde corre o sangue que a alimenta, que me alimenta. Sei, de olhos fechados, onde fica cada recanto e trago na lembrança tudo o que lá vivi e foi já tanto. Recordo, com nostalgia, alguns dias em que o Sol irradiava lá fora e dentro da minha casa gotejava copiosamente. Há dias em que ainda é assim. A minha casa espreita atentamente a vida pelos meus olhos, vive através de mim.
Certas casas são edifícios mais ou menos imponentes, onde a claridade exterior espreita pelas frestas das portadas entreabertas, namorando os tapetes, os quadros, cada um dos objectos inanimados que repousam sobre os móveis. Às vezes, as casas não passam de paredes de betão armado cobertas de telhas cor-de-laranja, mas nem sempre é assim. Há casas - há algumas poucas casas -, em que as paredes estão forradas a carne e osso e são um par de braços abertos para receber quem nelas entra. Quando entro numa dessas casas faço dela minha e deixo-me ficar lá dentro.
Posso chamar casa ao rio Douro, aos olhos de uma criança de quem não sei sequer o nome, às rugas de um velho calado e cabisbaixo a quem ninguém dá atenção. De qualquer lugar posso fazer a minha casa, desde que o traga comigo na memória. E tenho tantas casas dentro de mim que nem as posso contar.
Ainda que a minha casa esteja vazia, lá dentro nunca me sinto só. Há muitas pessoas que dela nunca partiram, muitos braços que lhe revestem o branco das paredes e me enlaçam de verdade quando a percorro. Sei que, como eu, nunca se irão dali. Sei que sempre me sorrirão quando com elas me cruzar, ainda que não as veja. Aquela casa será sempre o nosso ponto de (re)encontro, não importa os dias que passem.
Em minha casa vivo em muitos mundos, uns reais, outros tantos imaginários. Viajo entre os hemisférios, até aos destinos que são meus, pelo simples toque de qualquer coisa que guardo. E, então, inesperadamente, submergem-me os cheiros das cidades que percorri, inundam-me os ouvidos as vozes e os risos dos estranhos com quem me cruzei. Em casa arrecado o mundo inteiro e, também, um mundo só meu. Em minha casa, todo o mundo é meu e todos os lugares são ali.
A palavra «casa» é feita de gente, tem corpo e alma e um coração que ama. A minha casa é feita de mim e de quem um dia comigo lá quiser morar.»

Marta Madalena Botelho, in a minha palavra favorita, Centro Atlântico, 2007.

Uma evidência.

Lema para hoje


Não odeies o teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo o seu escravo. O teu ódio nunca será melhor do que a tua paz. 

Jorge Luis Borges

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A cantiga do bandido


«As suas mudanças de atitude magoam-me. Tem algum prazer em se aproximar de mim para depois me fazer isto? Apreciaria muito mais a sua sinceridade. Não o incomodo mais. Se estiver enganada, perdoe-me. Serão os seus antecedentes e a minha carência que me viciam o raciocínio.»

 

Porquê? Porquê as palavras, porquê os gestos, porquê os carinhos e as atitudes?
Nada era necessário, de nada dependia um resultado que, em si mesmo, era inevitável.
Então porquê?
Não entendo as mensagens, não descortino razões para as confissões feitas, sussurradas ao ouvido, nem sequer vislumbro o alcance da amostragem feita quanto à vida privada, quando é tão cioso da sua privacidade...
Como sempre, acabou por desaguar tudo na mágoa do costume, na dor enorme que o peito nunca abarca e que transborda pelos meus olhos a jorros; esses, incapazes de conter a tormenta, rebentam num pranto silencioso, triste, perdido.
Mais uma vez, caí na belíssima "canção do bandido". Bandido conhecido, de outros assaltos, contra os quais já devia, há muito, ter colocado trancas no coração. Mas não.
De todas as vezes, penso que será diferente. "Desta vez é que é". Mas nunca é. Nunca.

As reaproximações não diferem muito. Uma mensagem subtil, um telefonema simpático, um convite irrecusável. E eu vou, deixo-me levar pelo chamamento, qual pescador encantado pelo canto da sereia. É sempre agradável, é sempre tranquilo, é sempre intenso. E acaba sempre, invariavelmente, do mesmo modo.
Então porque pensei eu que, desta vez, seria diferente?
Porque foram ditas palavras guardadas há muito; porque foram confessados sentimentos que se desconheciam; porque se revelaram factos que se pensaram terem sido diferentes. Atendendo a que nada disto era necessário para alcançar o fim pretendido - já que esse, como sempre, era inevitável - o coração (esse tonto...) acreditou na sinceridade de tudo.
As recordações que pensava subsistirem apenas na minha memória, afinal, pareciam brotar da sua boca, como se, na fotografia dos momentos, tivessem sido revelados dois exemplares da mesma foto. Até os medos, as ânsias, os desejos pareciam coincidir. A sintonia parecia ser total.
A evolução aconteceu, naturalmente. Os contactos adensavam-se, os mimos multiplicavam-se, os carinhos brotavam com naturalidade.
Até os cenários se foram alterando, passando a dar-se a conhecer ao outro o que de mais íntimo temos: a nossa casa, o nosso mundo, encerrado entre quatro paredes.
De repente, volta tudo ao início. As mentiras, as desculpas esfarrapadas, as combinações não cumpridas. o SILÊNCIO...
Sempre o silêncio... daquele que dói, mais eloquente que todas as palavras.
E o vazio. Fundo, oco e incomensurável.

[mais uma tentativa de prosa...]

voar

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Soneto presente

Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.

José Carlos Ary dos Santos

...

- Não gosto de pretos [...].
- Dos brancos?
- Também não [...]. Eu gosto de homens que não tem raça.

de Oliviero Toscani
Mia Couto, Terra Sonâmbula

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Para ti...

de Carlo Pautasso
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Anderson

Desejo

Desejo primeiro que ames,
E que amando, também sejas amado.
E que se não fores, sejas breve em esquecer.
E que esquecendo, não guardes mágoa.
Desejo, pois, que não sejas assim,
Mas se fores, saibas ser sem desesperar.
Desejo também que tenhas amigos,
Que mesmo maus e inconsequentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Possas confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que tenhas inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exacta para que, algumas vezes,
Te interpeles a respeito
Das tuas próprias certezas.
E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que não te sintas demasiado seguro.
Desejo depois que sejas útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para te manteres de pé.
Desejo ainda que sejas tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Sirvas de exemplo aos outros.
Desejo que, sendo jovem,
Não amadureças depressa demais,
E que sendo maduro, não insistas em rejuvenescer
E que sendo velho, não te dediques ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.
Desejo também que sejas triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubras
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.
Desejo que descubras,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes e que estão à tua volta.
Desejo ainda que afagues um gato,
Alimentes um cuco e ouças o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, te sentirás bem por nada.
Desejo também que plantes uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhes o seu crescimento,
Para que saibas de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que tenhas dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloques um pouco dele
Na tua frente e digas «Isso é meu!»,
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
Desejo também que nenhum dos teus afectos morra,
Por ele e por ti,
Mas que se morrer, possas chorar
Sem te lamentares e sofrer sem te culpares.
Desejo por fim que, sendo homem,
Tenhas uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenhas um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a desejar-te.

Vitor Hugo

Nothing at all

domingo, 14 de novembro de 2010

A solidão

As observações e as vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se profundas no silêncio, ganham significado, transformam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido.

Thomas Mann, Morte em Veneza

Muitos. Eu tenho muitos.

sábado, 13 de novembro de 2010

E por vezes...

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolvam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

Passamos...

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Eugénio de Andrade

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Amor à vista

Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.

Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.

Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.

Mas o mar e os montes...
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.

Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.

Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.

Mar e montes teus beijos, meu amor!...

Fernando Echevarría

Spiritual human beings


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Em todas as ruas

Em todas as ruas te encontro,
em todas as ruas te perco.
Conheço tão bem o teu corpo,
sonhei tanto a tua figura,
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura,
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu,
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura.

Em todas as ruas te encontro,
em todas as ruas te perco.

Mário Cesariny

Algum dia...


 
 
Algum dia, em qualquer parte, em qualquer lugar, indefectivelmente, encontrar-te-ás a ti mesmo e essa, só essa, pode ser a mais feliz ou a mais amarga das tuas horas.
 
Pablo Neruda

Never done.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Ama-se um corpo...

Ama-se um corpo como instrumento de amar, como forma de onanismo de que o trabalho é dele. Ou como êxtase de um terror paralítico. Ou como orientação ao impossível que não está lá. Com raiva desespero de quem já não pode mais e não sabe o quê. Como avidez insuportável não de o ter tido na mão, porque o podemos ter nela, sofregamente, boca seios o volume quente harmonioso da anca e tudo esmagar até à fúria, ter o que aí se procura e que é o que lá está, mas não o que está atrás disso e é justamente o que se procura e se não sabe o que é nem jamais poderemos atingir.
Vergílio Ferreira, «Em Nome da Terra».

Remédio Santo.

Valsa de uma mulher só

Mudei tanto!
Já não sou aquela menina doce que um dia fui. A dureza da vida torna-nos amargos, cruéis, insensíveis. A mim, tornou-me tonta, crente e profundamente insegura.
Tonta porque acreditei que um homem que nada promete é capaz de dar muito; por isso me dei, me entreguei nas suas mãos, colocando-me ao seu dispor, sempre pronta para o atender, ansiando por um momento na sua companhia, pelo seu sorriso, pelo seu toque. Crente porque, apesar de tudo apontar (em luzes berrantes) para a loucura deste meu acto, ouvi unicamente o meu coração, deixei-o guiar os meus passos, os meus dias, a minha vida. E insegura porque, como é óbvio, nada correu como nos meus sonhos: faltaram as palavras, faltou a presença, faltou o sentimento...
É muito doloroso descobrir que não basta amarmos os outros para que eles nos amem de volta. É traumatizante perceber que não importa se nos damos pouco ou muito, os outros não retribuem necessariamente essa nossa dádiva, por vezes apenas absorvem de nós o que de melhor guardamos, reservando para si próprios as suas belezas interiores, os seus momentos de felicidade, sendo incapazes de fazer concessões, partilhas, sacrifícios, por menores que sejam.
Cheguei à conclusão - atormentadora - de que não sou capaz de viver um mundo de meias mentiras ou de meias verdades. Quero mais, preciso de mais. Quero tudo: o sonho, as flores, a música, a companhia, o romantismo, a atenção, a dádiva, o prazer, o sentimento... tudo.
Uma relação de encontros furtivos, nos quais não posso tocar, não devo beijar, em que tenho de guardar cá dentro o que me vai na alma, não me chega. Umas horas de abraços e carinhos, fechados entre quatro paredes, após o que não sei quando será a próxima vez, são muito pouco.
Errei. Desde o início pressentia, dentro de mim, que mais do que isto não poderia acontecer. Mas o que eu não sabia (ou não quis ver) é que o meu coração ganhou asas, adquiriu vida própria, e anseia até agora por um outro coração que se mantém fechado, sem que se perceba a razão.
Sinto-me amputada. Da mesma forma que os deficientes físicos tentam fazer, apesar disso, uma vida normal, também eu procuro que o meu dia-a-dia seja sereno, tranquilo. Só que a minha deficiência está lá: apenas não se vê, só eu a sinto, ardente, latejante, dentro do peito.
Por vezes, sinto que bastaria abrir-se uma porta e tudo daria certo. Noutros momentos percebo que o outro não pode, não quer, não está disponível para dar esse passo. É uma pessoa muito complicada, está cheio de amargura para com a vida e pleno de ódio aos outros. É esse ódio, esse desejo de vingança assustador que o tolhe, o limita, o atrofia. Sob uma capa de dureza, talvez se esconda alguém sensível e atento ao outro. Mas a vida cobriu essa sensibilidade com o manto da indelicadeza e essa atenção com a coberta do desprendimento.
E assim me vejo numa relação que não existe, a não ser dentro de quatro paredes impessoais e sem vida, num sentimento que deve, por força, ficar confinado ao meu subconsciente, pois que qualquer manifestação pode originar uma "catástrofe", ainda que não se perceba muito bem porquê.
Eu preciso de mais. Preciso do sonho, preciso da alegria da partilha, necessito de uma coisa inteira, não em fragmentos. Quero sentimento. De verdade. Será que algum dia terei?

[uma tentativa de prosa...]

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Laugh out loud!

Não posso...

Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

As Mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Cartas a Um Jovem Poeta III

"Se não existir nada de comum entre você e as outras pessoas, procure viver próximo das coisas. Elas não o abandonarão. Ainda há noites, e ventos que silvam entre as árvores e por cima de muitas terras. Ainda, em coisas e em animais, está tudo repleto de acontecimentos que você pode compartilhar. E também as crianças continuam a ser como você próprio foi em criança: tão tristes e tão felizes. Enquanto você pensa na sua Infância, voltará a viver entre elas, as crianças solitárias. E então, as pessoas maiores já não significarão nada, nem terá qualquer valor a sua dignidade.

Rainer Maria Rilke, Cartas a Um Jovem Poeta, sexta carta, de 23 de Dezembro de 1903.

Poema do Amor


Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas vezes amor,
amor,
amor,
amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.
Este é o poema do amor.

António Gedeão

Your dreams...

Que pode…



Que pode uma criatura senão,
entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Carlos Drummond de Andrade

domingo, 7 de novembro de 2010

Mulheres que Amaram Demais

O amor é um conceito intrigante. Existem diversas formas de amar, diferentes objectos de amor, formas díspares de viver e desfrutar deste sentimento universal. As nove mulheres que fazem parte desta obra são disso exemplo. São mulheres que, durante o século XX, algumas delas muito à frente do seu tempo, amaram sem limites, nem preconceitos, desafiando convenções e modelos estabelecidos, entregando-se de corpo e alma à sua paixão.

Marie Curie amou a ciência acima de tudo, Gabrielle Chanel, a moda, Marguerite Yourcenar, a sua literatura, a extravagante Gala Dalí entregou-se à arte, Jacqueline Kennedy Onassis viveu sempre perto de homens de poder, a misteriosa Wallis Simpson deixou-se fascinar pelo estatuto e pela riqueza, Golda Meïr amou a terra, o povo e um projecto político, a actriz Marlene Dietrich amou homens,  mulheres e a sétima arte, já Madre Teresa de Calcutá entregou-se a Deus e ao outro, sem limites.

É a história destas extraordinárias mulheres, o modo como se entregaram ao amor físico, carnal, erótico e sensual, como viveram ao lado de homens e mulheres, companheiros que nunca lhes fizeram sombra, mas que serviram os seus propósitos, a forma como perseguiram os seus objectivos profissionais e de vida, que Helena Sacadura Cabral nos conta com a sua visão sempre actual e irónica da realidade.

[Sinopse retirada da contracapa do livro Mulheres que Amaram Demais, de Helena Sacadura Cabral, lançado em Outubro de 2010 pela Esfera dos Livros. Uma das mais recentes aquisições para a minha biblioteca, que neste momento repousa na minha mesa de cabeceira. Comecei há pouco a lê-lo, mas sinto que não vou demorar muito a chegar às ultimas páginas. Um bom livro, que nos conta histórias de vida que, mais do que isso, são verdadeiras inspirações.]

O Monte dos Vendavais



A não esquecer

sábado, 6 de novembro de 2010

Pelo Sonho é que Vamos

Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e do que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama