segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Mas que sei eu das folhas no outono


















Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?
Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono
Nenhum súbito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha
qualquer. Mas eu sei que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha

Ruy Belo

Ó dia de hoje

Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
Florindo nas ondas, cantando nas florestas,
No teu ar brilham transparentes festas
E o fantasma das maravilhas raras
Visita, uma a uma, as tuas horas
Em que há por vezes súbitas demoras
Plenas como as pausas de um verso.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
Bailando na doçura
E na amargura
De serem perfeitas e serem breves.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 30 de janeiro de 2011

Sabores...

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.


Eugénio de Andrade


Pedaço de vida # 4


Fim de tarde ideal.
O calor vindo de todos os lados,
para aquecer o corpo e a alma.

Os nossos eus.


Esses eus de que somos feitos, sobrepostos como pratos empilhados nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras simpatias, pequenas constituições e direitos próprios - chamem-lhes o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) - de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e assim por diante; pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal, os diversos compromissos que os seus diversos eus estabelecerem consigo - e alguns são demasiado absurdos e ridículos para figurarem numa obra impressa.

Virginia Woolf, Orlando

Last night

sábado, 29 de janeiro de 2011

recordações

desse tempo recordo um retrato e dois nomes
que então jurámos dar aos filhos que um dia tivéssemos
e que por isso mesmo nunca demos
aos filhos que tivemos

desse tempo guardo as noites
que deveriam ter sido apenas de um deslumbrado amor
e que não foram
derramando-se em cicatrizes que se deitaram no meu corpo
e nele fizeram sua escondida e permanente morada

enquanto cuidadosamente guardei todos os teus vestígios
para te fazer ressuscitar num terceiro dia
mais conveniente

Alice Vieira

eternal doubts

Tarde de mimo.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A Vida.

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.


Nuno Júdice

Legenda



Feminino. Singular.

You just feel


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A banda sonora da minha noite...

Dizer Não



Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela.

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor.

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Legenda



Os nós e os laços.

As fadas.

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
...Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Alberto Caeiro


imagem de Francisco Godoy Aguilar

Para ti.


Porque quero. Porque sim.
Só por isso. Nada mais.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Dare to dream.



Somewhere over the rainbow
Way up high,
There's a land that I heard of
Once in a lullaby.

Somewhere over the rainbow
Skies are blue,
And the dreams that you dare to dream
Really do come true.

Raiz do Orvalho

















Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as coisas de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno

Mia Couto

Quem espera...


Pormenor da obra 'Los Amantes' de Teruel

É preciso ter muita paciência. Primeiro, sentas-te um bocadinho afastado de mim, assim, em cima da relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas todos os dias te podes sentar um bocadinho mais perto...
 
Antoine de Saint-Exupery, O Principezinho

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Smile

smile
though your heart is aching
smile
even though it's breaking
when there are clouds
in the sky,
you'll get by
if you smile
through your fear and sorrow
smile
and maybe tomorrow
you'll see the sun
come shining through
for you

light up your face with gladness
hide every trace of sadness
although a tear
may be ever so near
that's the time
you must keep on trying
smile
what's the use of crying?
you'll find that life
is still worth-while
if you just smile
smile

light up your face with gladness
hide every trace of sadness
although a tear
may be ever so near
that's the time
you must keep on trying
smile,
what's the use of crying?
you'll find that life
is still worth-while
if you just smile
keep on smiling
oh yeah
smile
never, never, never stop smile
smile

Os nossos olhos já não são peixes verdes

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

Uma questão de carácter.



A man's true character comes out
when he's drunk.

Charlie Chaplin


Dias feios.


Porque as segundas-feiras são, invariavelmente, dias feios.
Mesmo as repletas de sol. 


Arrependimentos

imagem de Damian Hovhannisyan
Poucos chegamos ao fim contentes por termos respondido a todos os acenos da vida. Levamos connosco para a sepultura o pesadelo dos gestos que não praticámos, dos sentimentos a que não demos expressão. A consciência de que a grande parte das oportunidades foram desperdiçadas e a íntima certeza de que tê-las aproveitado teria sido o melhor da nossa existência. 

Miguel Torga

domingo, 23 de janeiro de 2011

That's all there is.

Anita Ekberg e Marcello Mastroianni, La Dolce Vita, 1960

There is no end. There is no beginning.
There is only the passion of life.

Federico Fellini

O mais importante.

O Rosto, de Ingmar Bergman, 1958

sábado, 22 de janeiro de 2011

A singularidade do habitual.

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar.

Bertold Brecht

To believe or not.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A banda sonora da minha noite...

Perguntas


As perguntas verdadeiramente importantes são as que uma criança pode formular - e apenas essas. Só as perguntas mais ingénuas são realmente perguntas importantes. São as interrogações para as quais não há resposta. Uma pergunta para a qual não há resposta é um obstáculo para lá do qual não se pode passar. Ou, por outras palavras: são precisamente as perguntas para as quais não há resposta que marcam os limites das possibilidades humanas e traçam as fronteiras da nossa existência.

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser 

Detalhes. Preciosos.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A banda sonora da minha noite...



Are you lonesome tonight,
Do you miss me tonight?
Are you sorry we drifted apart?
Does your memory stray to a brighter sunny day
When I kissed you and called you sweetheart?
Do the chairs in your parlor seem empty and bare?
Do you gaze at your doorstep and picture me there?
Is your heart filled with pain, shall I come back again?
Tell me dear, are you lonesome tonight?


Venice

imagem de National Geographic
 
This was Venice, the flattering and suspect beauty this city, half fairy tale and half tourist trap, in whose insalubrious air the arts once rankly and voluptuously blossomed, where composers have been inspired to lulling tones of somniferous eroticism.

Thomas Mann

Essencialidades.


Uma mulher precisa de apenas duas coisas na vida: um vestido preto e um homem que a ame.

Coco Chanel

Legenda

imagem de ddiarte


O outono das nossas vidas.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Amei

imagem de Konrad Zagloba
 
 Amei palavras gastas que ninguém
ousava. Encantou-me a rima flor
amor,
a mais antiga das difíceis do mundo.

Amei a verdade jazente no fundo,
quase um sonho olvidado, que a convulsão
redescobre amiga. Com medo o coração
dela se aproxima, e não mais se farta.

Amei-te a ti que me escutas, e a minha carta
boa deixada ao fim deste meu jogo.

Umberto Saba


Um motivo de força maior.

imagem encontrada aqui
Daquela mesma varanda, tempos mais tarde, namorei uma rapariga de nome Deolinda, mais velha do que eu três ou quatro anos, que morava num prédio de uma rua paralela, a Travessa do Calado, cujas traseiras davam para as da minha casa. Há que esclarecer que namoro, o que então se chamava namoro, dos de requerimento formal e promessas mais ou menos para durar («A menina quer namorar comigo?», «Pois sim, se são boas as suas intenções»), nunca o chegou a ser. Olhávamo-nos muito, fazíamos sinais, conversávamos de varanda para varanda por cima dos pátios intermédios e das cordas de roupa, mas nada de mais avançado em matéria de compromissos. Tímido, acanhado, como me estava no carácter, fui algumas vezes a casa dela (vivia, creio recordar, com uns avós, mas, ao mesmo tempo, decidido a tudo ou ao que calhasse. Um tudo que daria em nada. Ela era muito bonita, de rostinho redondo, mas, para meu desprazer, tinha os dentes estragados, e, além do mais, devia pensar que eu era demasiado jovem para empenhar comigo os seus sentimentos. Divertia-se um pouco à falta de pretendente idóneo, mas, ou muito enganado ando desde então, tinha pena de que a diferença de idades se notasse tanto. Em certa altura desisti da empresa. Ela tinha o apelido de Bacalhau, e eu, pelos vistos já sensível aos sons e aos sentidos das palavras, não queria que mulher minha fosse pela vida carregando com o nome de Deolinda Bacalhau Saramago.

José Saramago, As pequenas memórias

Illusions.




terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A vós. A nós. A todos.


Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casa aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração.
Estando em casa andando pela rua
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi, Se isto é um homem


Porque a vida é o que fazemos dela.

Guilhermina Suggia

Na vida, há os que dão concertos
e há os que ficam na plateia.*

*lido aqui.

Desejos

imagem encontrada aqui
Pudessem todas as minhas manhãs começar assim: ao ar livre, com um café forte e um livro como companhia. Sem correrias, sem compromissos, sem horários.
Só eu, um café, um livro e os meus sonhos.


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sous le ciel de Paris...

Sous le ciel de Paris
S'envole une chanson...
Elle est née d'aujourd'hui
Dans le cœur d'un garçon.

Sous le ciel de Paris
Marchent des amoureux...
Leur bonheur se construit
Sur un air fait pour eux.

Sous le pont de Bercy
Un philosophe assis,
Deux musiciens, quelques badauds,
Puis les gens par milliers...

Sous le ciel de Paris
Jusqu'au soir vont chanter...
L'hymne d'un peuple épris
De sa vieille cité.

Près de Notre Dame
Parfois couve un drame;
Oui mais à Paname
Tout peut s'arranger:

Quelques rayons,
Du ciel d'été,
L'accordéon,
D'un marinier,
L'espoir fleurit...
Au ciel de Paris!


Sous le ciel de Paris
Coule un fleuve joyeux...
Il endort dans la nuit
Les clochards et les gueux.

Sous le ciel de Paris
Les oiseaux du Bon Dieu...
Viennent du monde entier
Pour bavarder entre eux.

Et le ciel de Paris
A son secret pour lui:
Depuis vingt siècles, il est épris
De notre Ile Saint Louis!

Quand elle lui sourit
Il met son habit bleu...
Quand il pleut sur Paris
C'est qu'il est malheureux.

Quand il est trop jaloux
De ses millions d'amants...
Il fait gronder sur nous
Son tonnerr' éclatant.

Mais le ciel de Paris
N'est pas longtemps cruel...
Pour se fair' pardonner...
Il offre un arc en ciel!

Edith Piaf


A realidade

Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.


 Alberto Caeiro

Pedaço de vida # 3



E algumas ficam gravadas em nós, entranhadas,
como as linhas na palma da mão.


domingo, 16 de janeiro de 2011

Os amigos

 
 
Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que partilhamos. Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das vésperas dos finais de semana, dos finais de ano, enfim... do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre.
Hoje não tenho mais tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado, seja pelo destino ou por algum desentendimento, segue a sua vida.
Talvez continuemos a nos encontrar, quem sabe... nas cartas que trocaremos.
Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices... Até que os dias vão passar, meses... anos... até este contacto se tornar cada vez mais raro.
Vamo-nos perder no tempo... Um dia os nossos filhos vão ver as nossas fotografias e perguntarão: "Quem são aquelas pessoas?" Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto!
"Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida!". A saudade vai apertar bem dentro do peito.
Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente... Quando o nosso grupo estiver incompleto... reunir-nos-emos para um último adeus de um amigo.
E, entre lágrimas abraçar-nos-emos. Então faremos promessas de nos encontrar mais vezes desde aquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vida, isolada do passado.
E perder-nos-emos no tempo... Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixes que a vida te passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades... Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!

Fernando Pessoa

O assassino e a vítima

imagem de Mirela Momanu
Seria difícil permanecer, depois de mais de uma semana de atenção mediática ao assunto, em silêncio ao "caso" do assassinato de Carlos Castro. Todos temos as nossas opiniões pessoais sobre o assunto, mais ou menos fundadas, mais ou menos ponderadas. Mas, de todo o modo, isso seria possível, porque são outras "as guerras" que nos movem, são distintos os nossos interesses sobre a actualidade.
Todavia, o que é, para mim, absolutamente impossível e impraticável, é a manutenção da indiferença ao despautério de comentários, opiniões, atoardas e bitaites verdadeiramente homofóbicos, preconceituosos e mesquinhos que, a cada passo, vamos vendo por aí.
Por isso, faço minhas as palavras de Paulo Pinto, que transcrevo.
E com isto, ficamos conversados.

Confesso que foi com um sorriso que recebi o cochicho, há dias, da sua morte. Julguei que estivessem a brincar comigo. Quando percebi que a pessoa que acabara de me dar a notícia não estava a gracejar, o sorriso desapareceu, sobretudo quando ouvi o comentário final: "sim, ia com um puto de 20 anos, já se sabe...". Depois, o espanto e o choque com o caso, as circunstâncias e os pormenores macabros do assassinato. Por fim, a indignação com o processo de lavagem do alegado assassino. Esta lavagem não decorre da existência de dúvidas, suspeitas de encobrimento ou incriminação por terceiros ou, sequer, atenuantes (acidente, legítima defesa, etc.); decorre, tão-somente, do facto de Carlos Castro ser homossexual e de ter uma relação com o alegado assassino. E isto, aos olhos do Portugal de 2011, quase 40 anos depois do 25 de Abril, o país que pertence à Europa Comunitária há mais de 20 e que se considera um farol de humanismo e de tolerância no mundo, é ainda algo que as pessoas não aceitam, não engolem e não perdoam. E que, em última instância, acaba por imputar uma "culpa" e um "merecimento" à vítima.
Já se sabia que os portugueses não são especialmente tolerantes com as diferenças, apesar de toda a prosápia nacionalista que nos inculcou a ideia de sermos abertos, tolerantes e de brandos costumes; e que a homossexualidade, apesar das recentes vitórias no campo político-legislativo, não é coisa facilmente aceite. Não nos devemos deixar, nunca, enganar pela ilusão "legal" e não subestimar o fosso entre legislação e prática. Este caso é particularmente assertivo: um homem foi morto, após espancamento prolongado, e posteriormente alvo de mutilação; era um sexagenário, e o autor do crime, um jovem forte e robusto. Até aqui, nada a apontar. O pormenor que faz toda a diferença é que tinham uma relação, e que um deles era um homossexual assumido. E aqui é que tudo fica, subitamente, transfigurado e o assassino passa miraculosamente a quase-vítima: um jovem bom ("de ouro", como disse a mãe - que queria a imprensa que ela dissesse?), belo, estudioso, "normal", trabalhador, que tinha um sonho de vingar na vida e de fazer carreira de modelo; infelizmente, essa carreira, tortuosa, não era fácil; ter-se-á envolvido com um decano das lides, influente e bem relacionado; viajaram juntos; os amigos deste disse que ele estava "apaixonado". A velha história do "subir na horizontal", tantas vezes propalada, cochichada, intrigada, quando está em causa uma mulher jovem e um homem poderoso, certo? Errado. Porque isso é quando se trata de uma mulher e um homem, ora pois, algo aceite socialmente; entre dois homens é uma abominação, como profere o Levítico.
O aspecto mais interessante, o traço mais relevante desta história horrível é, precisamente, o que envolve o preconceito homofóbico. Digam-me lá, eram dois adultos, certo? A sua relação não estava inquinada por nenhuma "contaminação" externa, digamos, relação laboral, hierarquia de serviço, etc. (segundo algumas informações, foi o jovem Renato Seabra quem procurou o Carlos Castro), correcto? Então porque carga de água é que o cronista de fofocas teve "culpa", "matou o miúdo psicologicamente" ou "estragou a vida ao rapaz"? Eu sei a resposta. É que, no fundo, apesar de toda a apregoada "tolerância", uma boa parte dos portugueses tem ainda uma homofobia latente e entranhada: o Renato foi "corrompido" pelo velho devasso, obrigado, constrangido, chantageado ou simplesmente instigado a actos abomináveis em troca de ajuda na tal carreira de modelo; o que ele fez (matá-lo) não se perdoa, mas compreende-se e desculpa-se (passe a contradição), afinal qualquer homem-que-é-homem reagiria assim (ou deveria) perante um atentado semelhante; os pormenores gore do olho arrancado a saca-rolhas são apenas excessos de um macho ofendido na sua virilidade. Digamos que o Renato estava disposto a muito para subir na carreira, mas há limites para tudo. Há certamente quem pense que o Renato deveria ser libertado e, quem sabe, recompensado, sempre seria uma forma de conter a bicheza que prolifera por aí.
Evidentemente, nada disto estaria em causa se o Castro fosse um velho babado por saias e o Renato, uma cheerleader de formas redondas. Nesse caso, a relação seria apenas mais uma "subida na horizontal" (bocejo!). E se ocorresse um homicídio, ninguém viria em socorro da autora, decerto que seria uma assassina interesseira, uma puta ladra que esteve meses a chular o pobre velhinho apaixonado e iludido e que tentou, decerto, um qualquer "golpe do baú" (provavelmente com um parceiro por trás pois, já cá se sabe, as mulheres não são muito inteligentes) que correu mal. Assim não, é apenas uma história, simultaneamente trágica e moralizante, de "uma vida perdida" de um jovem iludido, um aviso a todos os jovens para não se deixarem seduzir por iguais enganos e a confirmação da "violência da comunidade homossexual" (como o inefável Arroja defendeu, num post que, por pudor, me recuso a indicar), embora o gay é que tenha sido assassinado, mas que interessa isso? No fundo, estava a pedi-las, não estava?

Confusões


Love stories

sábado, 15 de janeiro de 2011

Perchè ti Amo
















Perchè ti amo, di notte son venuto da te
così impetuoso e titubante
e tu non mi potrai più dimenticare
l'anima tua son venuto a rubare.
Ora lei è mia
del tutto mi appartiene nel male e nel bene,
dal mio impetuoso e ardito amare
nessun angelo ti potrà salvare.

Herman Hesse

Espero

Espero sempre por ti
o dia inteiro,
Quando na praia sobe,
de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

Sophia de Mello Breyner

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Para embalar os sonhos.

Gosto das mulheres que envelhecem

Gosto das
mulheres que envelhecem,
com a pressa das suas rugas, os cabelos
caídos pelos ombros negros do vestido,
o olhar que se perde na tristeza
dos reposteiros. Essas mulheres sentam-se
nos cantos das salas, olham para fora,
para o átrio que não vejo, de onde estou,
embora adivinhe aí a presença de
outras mulheres, sentadas em bancos
de madeira, folheando revistas
baratas. As mulheres que envelhecem

sentem que as olho, que admiro os seus gestos
lentos, que amo o trabalho subterrâneo
do tempo nos seus seios. Por isso esperam
que o dia corra nesta sala sem luz,
evitam sair para a rua, e dizem baixo,
por vezes, essa elegia que só os seus lábios
podem cantar.

Nuno Júdice


Golda Meir

Legenda


 Os sinais do tempo.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

As palavras

imagem de Ewa Brzozowska
(…) – Perguntar o quê?... – diz em voz baixa, com uma ênfase depreciativa, como se fizesse troça de si mesmo.
– O que é que se pode perguntar das pessoas com palavras? O que vale a resposta que uma pessoa dá com palavras e não com a realidade da vida?... Vale pouco – diz com determinação. 
– São poucas as pessoas cujas palavras correspondem por completo à realidade das suas vidas. Talvez seja esse o fenómeno mais raro na vida. Na altura, ainda não o sabia. Agora não me refiro aos mentirosos, aos safados. Só penso que conhecer a verdade, adquirir experiências, de nada serve, porque ninguém consegue mudar o seu carácter. Talvez não se possa fazer mais nada na vida que adaptar à realidade com inteligência e cautela essa outra realidade inalterável, o carácter pessoal. É a única coisa que podemos fazer. E mesmo assim, não seríamos mais sábios, nem mais protegidos… Quero falar contigo, e ainda não sei se tudo aquilo que eu possa perguntar e tudo aquilo que tu possas responder não alterará os factos. Mas é possível a gente conhecer os factos, aproximar-se da realidade com a ajuda de palavras, perguntas e respostas: por isso quero falar contigo. (…)

Sándor Márai, As velas ardem até ao fim

Man's world


I don't mind living in a man's world as long as I can be a woman in it.

Marilin Monroe 

Please??



quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Delicatessen

Audrey Tautou
ela é uma moça de poses delicadas, sorrisos discretos e olhar misterioso. ela tem cara de menina mimada, um quê de esquisitice, uma sensibilidade de flor, um jeito encantado de ser, um toque de intuição e um tom de doçura. ela reflete lilás, um brilho de estrela, uma inquietude, uma solidão de artista e um ar sensato de cientista. ela é intensa e tem mania de sentir por completo, de amar por completo e de ser por completo. dentro dela tem um coração bobo, que é sempre capaz de amar e de acreditar outra vez. ela tem aquele gosto doce de menina romântica e aquele gosto ácido de mulher moderna.
Caio Fernando Abreu