quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Sei agora

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.

Eugénio de Andrade

In Memoriam

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa é nada me prende.

No dia em que passam 80 anos sobre a sua morte.

(O excerto é do heterónimo Bernardo Soares - Livro do Desassossego, trecho 10, Assírio & Alvim, 1998, p. 53.
O esboço tem o traço inconfundível do Mestre Júlio Pomar.)

segunda-feira, 13 de julho de 2015

O dia em que te deixei.

Gosto de recordar as datas e os momentos felizes. São eles que me enchem o peito, é a sua memória que me alimenta os dias. No que te respeita, gosto de recordar o dia em que nasceste, os dias em que me levavas aos ombros, o dia tão falado até hoje em que me deixaste partir uma dúzia de ovos no chão da cozinha.
Há apenas uma excepção: o dia de hoje. Este dia ficou mais gravado em mim que o dia em que tu nos deixaste. Foi um dia claro aquele, estava sol, muito sol. Muita gente, muitos abraços, muitas flores. Gente demais, abraços demais; só as flores nunca são demais.
Dois dias antes, sem grande surpresa mas com a angústia inerente à inevitabilidade do momento, recebi a notícia de que te tinhas ido embora. Fugiu-me o chão debaixo dos pés. Senti-me perdida, sentimo-nos todos assim, sabes? Era muito cedo, havia ainda tanta coisa a fazer, tanto a dizer, e tu já cá não estavas. Ficou muito por completar: não chegaste a levar-me ao altar, não chegaste a dar a mão ao F., não chegaste a tê-lo nos braços.
A 13 de julho de 2006, precisamente a esta hora, começava o ritual da nossa despedida. Já te disse que estava um lindo dia de sol? E, ainda assim, o céu para mim estava negro, escuro como breu. Foi preciso subir a escada da dor e plantar no infinito a Estrela mais brilhante do universo. Aquela que o F. reconhece e sente como sua protetora. Aquela para a qual eu olho em busca de orientação, de auxílio, de consolo.
E é por isso, Avô, que eu gosto de recordar o dia em que te deixei.

imagem daqui.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Legenda.





O homem é o homem e a sua circunstância.

José Ortega y Gasset

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Contai aos vossos filhos*






Documentário A Noite Cairá [Andre Singer, 2014]. A ver, para que nunca se esqueça.


*O título do post corresponde ao título do livro de Stéphane Bruchfeld sobre o Holocausto [edição portuguesa da Gótica, 2000].


Manhãs submersas

Quando a manhã, supostamente calma e tranquila, se transforma no pior momento do dia. Quando, antes de sair de casa, já desejaste que o dia tivesse acabado. Quando (quase) tudo o que pode correr mal corre mesmo mal. Quando duas horas não são suficientes para fazer tudo o que, regra geral, fazes em quarenta e cinco minutos. Quando às nove da manhã já falaste mais do que vais falar até à hora do almoço. Quando fechas a porta de casa atrás de ti com vontade de não a voltares a abrir tão cedo.

Penelope Cruz in «Vicky Cristina Barcelona» [2008]

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

As minhas manias.

Gosto de guardanapos de pano. 
Gosto de camas feitas de lavado e de lençóis brancos de algodão. 
Gosto de mimos. 
Gosto do cheiro dele. 
Gosto de mantas, mesmo no verão. 
Gosto do cheiro da terra molhada. 
Gosto de chá 365 dias por ano, de manhã, à tarde e à noite. 
Gosto de Liszt. 
Gosto de jantares tardios, com pão, queijo, vinho e uma boa companhia. 
Gosto de lápis bem afiados e de canetas de tinta permanente. 
Gosto de sorrisos abertos e de gargalhadas sonoras. 
Gosto do calor do sol no meu rosto. 
Gosto de manhãs longas à mesa do pequeno-almoço. 
Gosto de sapatos. 
Gosto de sorrisos abertos. 
Gosto da pele do meu filho. 
Gosto de Rembrandt e de Caravaggio. 
Gosto de livros. 
Gosto do meu pescoço. 
Gosto do barulho da chuva a bater na vidraça. 
E há dias em que gosto da vida.


imagem daqui.