sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Tempo


Mais um ano termina e um novo começa.
Tempo de balanços, de resoluções, de (tentativas de) mudança.
Não acredito em alterações repentinas, sobretudo no que respeita a traços característicos da nossa personalidade. Mas acredito e sei que mudar é possível, tudo é possível.
Um brinde a 2011, às suas mudanças e à manutenção do que em nós é mais precioso.



Isto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
...Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa

Uma questão de esperança

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O sorriso

Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

To be.

descoberta aqui

Da voz das coisas

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O mundo perfeito.

Uma sala quente com a lareira acesa.
A luz de um candeeiro que transforma o ambiente.
A música doce e suave que nos embala a alma.
Um livro cativante que quase se devora.
Uma chávena de chá quente, forte e aromático.
Um colo carinhoso que nos envolve.
O sentimento de que o mundo é perfeito.
Nestes momentos, acho mesmo que sim.
E nem é preciso Paris...


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Suave Milagre


Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíades: - mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganin, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.
Uma tarde um homem de olhos ardentes e deslumbrados passou no fresco vale, e anunciou que um novo Profeta, um Rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do reino de Deus, curando todos os males humanos. E enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo dum Decurião Romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que noutra manhã, atravessando numa barca a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os Livros na Sinagoga. E como em redor, assombrados, seareiros, pastores e as mulheres trigueiras com a bilha no ombro lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias de Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog - o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos e meteu pensativamente por sob o Aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança, deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar: as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicómoro, não surgiria uma claridade: e nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos.

Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, duma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do Monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas - e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas, e pelas encostas onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos, cepas mirradas e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel.
Apenas ouvira falar desse novo Rabi da Galileia, que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras - Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolónio, ou Rabi Ben-Dossa, ou Simão, o Subtil. Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos: com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto: e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o Rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar.
Os servos apertaram os cinturões de couro - e largaram pela estrada das Caravanas, que, costeando o Lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hermon. Depois, na frescura duma manhã macia, o Lago de Tiberíade resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro e de alvos terraços por entre os palmares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava preguiçosamente a sua barca duma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O Rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o Rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas.
Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava lentamente ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos humildemente saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã lavadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo Rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o Rabi atravessara o Oásis de Engaddi, depois se adiantara para além... - Mas onde, "além"? - Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de Além-Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio - e debalde procuraram Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Yakob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead: e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela Lua-nova, um Rabi maravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito duma tecedeira, e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo açodadamente pelo caminho dos Peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às Nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudias ramos de mimosas, embarcara no Lago num batel de pesca, e à vela navegara para Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo passaram o Jordão na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um Fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse Profeta novo da Galileia que, como um Deus passeando na terra, semeava milagres? A adunca face do Fariseu escureceu enrugada - e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso:
- Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém! Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surdem os néscios e os impostores...
E como os servos recuaram ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados - o furioso Doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando:
- Racca! Racca! e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam, - e todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia.

Por esse tempo, um Centurião Romano, Públio Sétimo, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partas, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática, e gozava, como favor supremo dos Deuses, a amizade de Flaco, Legado Imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa, como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida e bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a Lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo pàlidamente a seu pai, definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava vagarosamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um momento a ave, torneando até bater morta sobre as rochas: - depois, com um suspiro, mais triste e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar.
Então Sétimo, ouvindo contar, a mercadores de Chorazim, deste Rabi admirável, tão potente sobre os Espíritos que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem pela Galileia, e por todas as cidades da Decápola, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira - e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana, que desde Cesareia até ao Lago corta toda a Tetráquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esburacavam com a ponta das lanças a palha das medas: e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos e malgas cheias de vinho, que eles bebiam dum trago, sentados à sombra dos sicómoros. Assim correram a Baixa Galileia - e, do Rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das pontes detinham os peregrinos, gritando o nome do Rabi, rasgando os véus às virgens: e, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas Sinagogas e batiam sacrìlegamente com os punhos das espadas nas Thebahs, os Santos Armários de cedro que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hebron arrastaram os Solitários pelas barbas para fora das grutas para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o Rabi: - e dois mercadores Fenícios que vinham de Jope com uma carga de malóbatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dramas a cada Decurião. Já a gente dos campos, mesmo os bravios pastores de Idumeia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados, e arrojavam sobre eles as Más Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim tumultuosamente erraram até Áscalon: não encontraram Jesus: e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes.

Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico dum templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo Sacerdote. Conhecia ele um novo Profeta que surgira na Galileia, e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
- Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a Ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos Imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!
Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hermon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas.

Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ele o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava um grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava, com os olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce rabi! quantos o desejavam, que de desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, a mãe mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males, ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça engelhada:
- Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde Hébron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e nossa dor mora connosco, dentro destas paredes e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:
- Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar! E a mãe, em soluços:
- Oh meu filho como te posso deixar! Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
- Mãe, eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
- Aqui estou.

Eça de Queirós, O Suave Milagre

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
 
Vinicius de Moraes

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Il più bello dei mari

Il più bello dei mari
è quello che non navigammo.
Il più bello dei nostri figli
non è ancora cresciuto.
I più belli dei nostri giorni
non li abbiamo ancora vissuti.
E quello
che vorrei dirti di più bello
non te l'ho ancora detto.

Hikmet
Lettere dal Carcere a Munevver (1942)


Soneto da infidelidade

Toda a poesia é feita de traição
e ao que somos fiéis já não sabemos:
da terra de que vimos só retemos
memórias que nos duram sem razão.

Escondemos na poesia o que não sabe
seu nome nem seu canto na memória:
escondemos na poesia não vitória,
mas restos de viver, o que não cabe

na fria tábua rasa da experiência
destilando sem fim na consciência
o mais fino licor da emoção.

É infiel ao verso a poesia:
nela se apura a noite contra o dia
e a nós mesmo nos trai no coração.

Luís Filipe Castro Mendes



quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Rainy day

imagem encontrada aqui.

Caminho

Há mentiras de mais e compromissos
(Poemas são palavras recompostas)
E por tantas perguntas sem resposta
Mascara-se a verdade com postiços.

imagem de Henry Cartier-Bresson
Não vida, nem sombra, nem razão,
É jaula de doidice furiosa,
Eriçada de gritos, angulosa,
Com estilhaços de vidro pelo chão.

É carrego de mais esta jornada
E protestos não servem, nem suores,
Já mordidos os membros de tremores,
Já vencida a bandeira e arrastada.

Depois se me apagaram os amores
Que a viagem fizeram desejada.

José Saramago

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

que faria

que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
imagem de Carlo Pautasso
que faria sem este silêncio sorvedouro dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue
sobre a poeira do seu lastro


que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoche
sem voz no meio das vozes
encerradas comigo

Samuel Beckett

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Em bruto.

O tédio não é a ausência de paixão, mas a paixão maior e mais envolvente - o desejo de felicidade deixado em estado bruto.

Giacomo Leopardi

Liberdade

— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga

domingo, 19 de dezembro de 2010

A saída

imagem de Dragan Mihajlovic

Fogos III

Não há amor infeliz: 
não possuímos senão aquilo que não possuímos.
Não há amor feliz:
o que possuímos, já não o possuímos.

Marguerite Yourcenar, Fogos


O Captain, My Captain!

O Captain my Captain! our fearful trip is done,
The ship has weathered every rack, the prize we sought is won,
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring;
But O heart! heart! heart!
O the bleeding drops of red,
Where on the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

O Captain! my Captain! rise up and hear the bells;
Rise up--for you the flag is flung for you the bugle trills,
For you bouquets and ribboned wreaths for you the shores a-crowding,
For you they call, the swaying mass, their eager faces turning;
Here Captain! dear father!
This arm beneath your head!
It is some dream that on the deck,
You've fallen cold and dead.

My Captain does not answer, his lips are pale and still;
My father does not feel my arm, he has no pulse nor will;
The ship is anchored safe and sound, its voyage closed and done;
From fearful trip the victor ship comes in with object won;
Exult O shores, and ring O bells!
But I, with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

Walt Whitman

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Precisa-se

Pensamos demasiadamente,
Sentimos muito pouco,
Necessitamos mais de humildade
Que de máquinas.
Mais de bondade e ternura
Que de inteligência.
Sem isso,
A vida tornar-se-á violenta e
Tudo se perderá.

Charles Chaplin

Great expectations...

encontrada aqui

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Planos

imagem de Carlo Pautasso
É melhor não fazermos muitos planos para a vida para não baralharmos os planos que a vida tenha para nós.

Agostinho da Silva

E assim sou.

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, fragmento [10]

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Happy endings

encontrada aqui

Tempo fluvial



















Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos.

Nuno Júdice

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Uma estranha em mim

Ainda cá estou. Sempre eu.
Chego à conclusão que tudo na vida muda, o mundo é feito de mudanças e os homens têm uma capacidade de adaptação incomensurável.
Sou independente. Ou, pelo menos, quero crer (e fazer crer) que sim. Vim viver sozinha.
Há já quase um mês que mudei de cama, de sofá, de paisagem matinal.
Escrevo-te deitada numa cama forrada a lençóis beijes - a minha cama.
Esta é, tão-somente, mais uma das minhas recorrentes noites de insónia. E lembrei-me de ti. Lembrei-me porque pensar em ti, desfolhar-te, é lembrar tudo o que já fui, o que passei, o que passou.
Lido, hoje tudo parece tão distante... e, no entanto, tudo permanece: as personagens, o enredo, os sentimentos, o desejo.
Sou uma mulher insatisfeita de afectos. E não posso dizer que os tenha parcos... Vivo de ilusões, de momentos, de fantasias... Sonho que ele vai tocar à porta de surpresa, quando sei perfeitamente que nunca virá sem avisar. Anseio ouvir as palavras que ele não diz. Recordo com saudade os passeios que não fizemos, os abraços que não demos, os planos que não se concretizaram.
Mas se a mente analisa, pondera e, avaliando, conclui, o coração está-se nas tintas!
Este amor sabe a sal... Tempera-me a vida, dá sabor aos momentos que me alimentam o dia-a-dia. Mas arranha. Corta o coração.
A ansiedade às vezes é tanta que sinto o coração a saltar do peito.
Ouve a cabeça, coração. Ela sabe o que diz: nada esperes, nada sonhes, nada anseies. Deste modo, o que vier é sempre bom.
Desculpa este desabafo estranho, mas estranha é como eu me sinto.
Uma estranha, dentro da minha própria vida.

[nova tentativa de prosa. mais uma.]

Um Homem Não Chora

Procuro com a mão o despertador que está a tocar há mais de meio minuto. Encontro-o entre um livro e o copo de água que me colocam todas as noites sobre a mesinha-de-cabeceira. Carrego num botão e o silêncio volta a entrar no meu quarto. Sei que já não posso readormecer. O meu despertador toca invariavelmente às oito de manhã, todos os dias, faça sol ou faça chuva.
É uma das invariáveis da minha vida, tão invariável como o amor da Fernanda, como os jantares de família nos dias santos, como o som do piano da vizinha aos domingos.
Não há nada a fazer. Atiro com a roupa ao chão e procuro, com o pé, o chinelo que deve estar algures ao lado da cama.
Lá fora a cidade começa a ser atacada pela luz, uma luz que não perdoa nada, nem a racha duma parede, nem uma rua mal varrida, nem as rugas nas caras das mulheres. As próprias sombras são atacadas mal saem das coisas e desfazem-se antes de chegar ao chão. Dentro duma hora as últimas sombras da cidade já estarão refugiadas debaixo das árvores da avenida e atrás dos muros mais espessos dos bairros populares.
Começo o dia na casa de banho, em frente do espelho, fazendo a barba com uma gillete nova que me deu a inevitável Fernanda.
Entorto a cara para a direita e para esquerda em frente do espelho e observo, mais uma vez, que sou feio. Não há qualquer razão para que a Fernanda continue a gostar de mim. Por mais que tente não consigo compreendê-la.
Já está! Já me cortei!
Abro a gaveta e procuro, em vão, uma pedra-alúmen que comprei há anos, quando ainda era solteiro. Desapareceu.
Não tenho outro remédio senão limpar o sangue à toalha.
A minha toalha é azul e tem o meu nome bordado. A toalha da Fernanda é cor-de-rosa e tem o nome dela bordado. Pego na toalha e procuro o meu nome. Só agora reparo que a toalha é diferente. É nova, o azul ainda não desbotou. A um canto, em lugar do meu nome, encontro a palavra "dele" bordada a branco. Pego na toalha cor-de-rosa, também nova, que está ao lado da minha. A um canto, também bordada a branco, está a palavra "dela".
Já nem sequer tenho nome! Agora sou "ele", a parte masculina duma quimérica unidade que passa por ser um casal feliz...
Atiro com as duas toalhas para o chão e começo a limpar a cara, sem me esquecer de tirar o sabão que está atrás das orelhas.
O Espelho, René Magritte
Pensando melhor, as toalhas não têm culpa do que se passa. Atirá-las para o chão é infantil. Abaixo-me para as apanhar. Estão na posição em que caíram, muito juntas, envolvidas uma na outra, como se tivessem casado na véspera.
Batem à porta. Já sei quem é.
- Posso entrar?
- Não. Tens de esperar um minuto. Estou na retrete.
A mentira produz o efeito desejado. A porta não se abre. A Fernanda continua lá fora. Sorrio para o espelho. A imagem responde-me da mesma forma. Fico parado a fim de ouvir os passos da Fernanda afastando-se da porta. Não oiço nada. Continua lá fora à espera que eu saia da retrete.
- Já posso entrar?
- Ainda não. É só um momento.
Puxo a corrente do autoclismo para que ela pense que acabo de me levantar.
- Já posso?
- Já.
Atravesso a casa de banho dum salto e mergulho a cabeça no lavatório. Quando ela entrar, já me não pode beijar, porque estou molhado.
Sem olhar para trás, sigo os seus movimentos. Sentou-se na borda da banheira. Prepara-se para me fazer um comunicado. Pelo silêncio, creio que se trata de coisa importante. Terá resolvido que a nossa experiência de dormirmos em quartos separados já deu o que tinha a dar? Quererá voltar para a minha cama?
- Já te esqueceste de que hoje é sexta feira?
- Não. Levantei-me agora mesmo e ainda não tive tempo de me lembrar que hoje é sexta-feira. Porquê? É dia de peixe?
- Já te esqueceste de que tens uma coisa a fazer hoje?
- Espera aí... tenho de almoçar, tenho de jantar, tenho de me deitar... Será alguma coisa destas?
- Não serás capaz, pelo menos uma vez por dia, de tomares as coisas a sério?
- Eu não. E tu?
- Acaba com as brincadeiras. Hoje, às seis horas, é o cocktail dos Simões.
- Tens razão. Peço-te desculpa de me não ter lembrado dum facto tão importante como esse. O cocktail dos Simões vai alterar todo o curso da história da humanidade. Ainda bem que me lembraste. Imagina o que acontecia se eu não fosse...
- Disseste que ias.
- Disse?
- Disseste.
- Isso é grave, mesmo muito grave!
- Vais?
- Não sei. Pode ser que morra, entretanto. Pode ser que tenha um filho. Pode ser que seja atropelado. Até pode acontecer que me apeteça ir...
- Poderias fazer-me o grande favor de me telefonares dizendo se vais ou não vais, para que eu saiba o que devo fazer?
- Mesmo que eu não vá tu podes ir. Não creio que o Simões atente contra a tua vida. Ainda que lhe apeteça, desiste logo que lhe digas que és...
- Que sou o quê?
- Que és minha mulher.
- Não é isso o que tu ias a dizer.
- Mas foi isso o que eu disse.
Abro a porta da casa do banho e saio. Ela vem atrás de mim e entra comigo no quarto. Começo a vestir-me por cima, pela camisa, na esperança de que ela saia antes de eu vestir as calças.
- Vais ou não vais?
- Aonde?
- Ao cocktail dos Simões.
- Não posso. É dia de peixe...
- Desde quando é que te começaste a preocupar com essas coisas?
- Comecei hoje.
- E quanto tempo dura?
- Até amanhã.
- Já agora, diz-me o que tem que ver o cocktail dos Simões com o facto de hoje ser dia de peixe.
- É que nos cocktails há sempre salsichas.
- Tens muita graça.
- Nasci assim.
- Queres tomar alguma coisa antes de saíres?
- Não. O que eu queria era que fosses ver se eu estou lá dentro enquanto visto as calças.
- Não creio que seja necessário. Sou a tua mulher.
- Então deixa-te estar.
Tiro as calças do pijama e visto-me.
Estou pronto.
Saio do quarto e encaminho-me para a porta, seguido pela Fernanda.
- Vais ou não ao cocktail dos Simões?
- Queres que eu vá?
- Quero.
- Então não vou.
Saio de casa com uma sensação de alívio. Paro numa mercearia e compro cem gramas de passas, que meto no bolso. Sigo pela rua a baixo em direccão ao Chiado.
Já prometi à Fernanda, praticamente, tudo que tenho para que ela me deixe em paz. Tenho a certeza de que há-de haver uma solucão para tudo isto. Não pode deixar de haver. Não é possível que, numa época em que se pensa ir à Lua, eu tenha de voltar para casa, para uma mulher de quem não gosto, para uma vida que odeio, para um ambiente que me revolta. Então o homem quer sair do seu planeta quando ainda não conseguiu, sequer, fugir da aldeia em que vive?
Não foram os cães que inventaram os açaimes. Não foram os leões que inventaram os jardins zoológicos. Teriam sido os homens os inventores das leis que os prendem e amarram? As leis foram feitas pelos homens para seu uso próprio. Se lhes não servem, arranjam-se outras que lhes sirvam.

Luís de Sttau Monteiro, Um Homem Não Chora

Um café, por favor.


Ainda não são 10h da manhã e já vou a caminho do segundo café do dia. Quente, amargo, forte e sempre surpreendente. Enfim, como a vida. Exactamente.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Banda Sonora da Noite...

Sou incapaz...

Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros;
há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água;
ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.
Jorge Luís Borges

sábado, 11 de dezembro de 2010

Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frémitos carnais, ela dizia:
"Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!"
Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.
Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
"Mais abaixo, meu bem!" Num frenesi.
No seu ventre pousei a minha boca,
"Mais abaixo, meu bem!" - disse ela, louca.
Moralistas, perdoai! Obedeci…

Olavo Bilac

Still miss you...

imagem de Carlo Pautasso

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Solidão














Solidão não é a falta de gente para conversar,
namorar, passear ou fazer sexo...
Isto é carência!
Solidão não é o sentimento que experimentamos pela ausência
de entes queridos que não podem mais voltar...
Isto é saudade!
Solidão não é o retiro voluntário que a gente se impõe,
às vezes para realinhar os pensamentos...
Isto é equilíbrio!
Solidão não é o claustro involuntário que o destino
nos impõe compulsivamente...
Isto é um princípio da natureza!
Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado...
Isto é circunstância!
Solidão é muito mais do que isto...
Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos
e procuramos em vão pela nossa alma. 

Chico Buarque

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Poema a Margarida

Ai, Margarida,
Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

Álvaro de Campos

Ser GRANDE.

descoberta aqui

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

La femme.

Il considérait la femme comme un objet d'art,
délicieux et propre à exciter l'esprit.

Charles Baudelaire


Devils...

encontrada aqui

O Destino

imagem de Monalli
No fundo, a sabedoria do destino é a nossa própria. Porque a acompanhamos com uma consciência incessante daquilo que, no fundo, nos é permitido fazer. Podemos estar sujeitos a algumas tentações mas nunca nos enganamos. Agimos sempre no sentido do destino. As duas coisas formam uma só.
Quem se engana é porque ainda não compreende o seu destino. Quer dizer, não compreende qual a resultante de todo o seu passado - o qual lhe indica o futuro. Mas quer o compreenda ou não, indica-lho à mesma. Cada vida é aquilo que devia ser.

Cesare Pavese

In Memoriam.


Há precisamente 30 anos, John Lennon era barbaramente assassinado a tiro, em frente a sua casa, em Nova Iorque. Tinha 40 anos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Os versos que te fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem para te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim para te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos para te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Florbela Espanca

To do. Always. [#2]

recolhida aqui

Aparências...


Se você resolver deixar de fumar,
de beber e de fazer amor,
não vai na realidade ter uma vida mais longa,
apenas parece mais longa.

Clement Freud
lido aqui

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Sei la mia schiavitù

encontrada aqui
Sei la mia schiavitù, sei la mia libertà
sei la mia carne che brucia
come la nuda carne delle notti d'estate
sei la mia patria
tu, coi riflessi verdi dei tuoi occhi
tu, alta e vittoriosa
sei la mia nostalgia
di saperti inaccessibile
nel momento stesso
in cui ti afferro.


Hikmet,
in Lettere dal Carcere a Munevver (1949).

I will...

encontrada aqui

domingo, 5 de dezembro de 2010

Amor como em casa


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

A Maior Flor do Mundo


E se as histórias para crianças passassem
a ser de leitura obrigatória para os adultos?

Seriam eles capazes de aprender realmente
o que há tanto tempo têm andado a ensinar?

José Saramago

sábado, 4 de dezembro de 2010

... from here...

descoberta aqui


Bastava-nos amar...















Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa

In Memoriam.


Nunca me senti tão sozinho 
e nunca tive tanta certeza de estar tão certo.

Francisco Sá-Carneiro
(04.12.1980)

Ditos...

Houve alguém que disse uma vez que, no casamento, o importante é que um deles seja a pessoa certa.

Agustina Bessa-Luís

Fim de semana vermelho

de Patrick Parenteau, aqui

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Para...

Para te amar ensaiei os meus lábios...
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!

Para tocar-te ensaiei os meus dedos...
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio...
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!

E a vida foi passando, foi passando...
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.

A vida foi passando, foi passando...
E nunca mais vieste!

Pedro Homem de Mello