sábado, 12 de fevereiro de 2011

A coragem dos egípcios



é em dias assim

que eu suspendo a descrença.

e, como toda a gente da minha idade, recordo o dia em que, com 10 anos, acordei com a minha mãe a dizer 'houve um golpe de estado' e saltei na cama a celebrar uma coisa que nem sabia bem o que era.

pode correr mal? pode, pode correr péssimo. mas agora, por um dia, por uns dias, vamos pensar nisto: a rua -- a rua, e não tanques, não armas, não soldados nem cliques nem conspirações de palácio nem manobras internacionais, mesmo se tudo isso teve o seu papel nisto -- fez cair um ditador. não me lembro de uma coisa assim tão deslumbrante ter acontecido no meu tempo de vida, sob os meus olhos, em directo. a coragem não é a mais admirável das qualidades, mas anda lá perto, e a coragem dos egípcios é tanto mais admirável quanto sucede num lugar onde nós, os ocidentais, tinhamos decretado um deserto de valor e sentido, um lugar que tínhamos abandonado simbolicamente à sua sorte -- a sorte de ser um tampão, um sítio cego, sem janelas.

nós e o exército somos um, cantavam eles na praça da libertação. nós e os egípcios somos um. hoje, amanhã, e, com sorte, nos dias todos. e se correr mal e deixarmos de ser, sabemos isto: que um dia fomos. essa noção é tudo o que é preciso. também precisamos de lirismo, de vez em quando. os egípicios provam-nos isso mesmo: o lirismo pode mover montanhas.

Fernanda Câncio, blogue jugular, 11.02.2011

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