sexta-feira, 30 de março de 2012

A banda sonora da minha noite...




Veja bem, meu bem
Sinto te informar
Que arranjei alguém
P'ra me confortar
Este alguém está
Quando você sai
Eu só posso crer
Pois sem ter você
Nestes braços tais...

Veja bem, amor
Onde está você?
Somos no papel
Mas não no viver
Viajar sem mim
Me deixar assim
Tive que arranjar
Alguém p'ra passar
Os dias ruins...

Enquanto isso
Navegando eu vou sem paz
Sem ter um porto
Quase morto, sem um cais
E eu nunca vou
Te esquecer, amor
Mas a solidão
Deixa o coração
Neste leva-e-trás...

Veja bem além
Destes fatos vis
Saiba: traições
São bem mais subtis
Se eu te troquei
Não foi por maldade
Amor, veja bem
Arranjei alguém
Chamado saudade
Amor, veja bem
Arranjei alguém
Chamado saudade...

Em todas as ruas.

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco.


Mário Cesariny

Resolução.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dicionário.

As palavras mais belas são as que nascem
do teu corpo: cabelos, lábios, ombros, seios,
até o ventre, e o que entre as coxas se esconde.
Escrevo-as devagar, como se lhes tocasse; e
cada uma delas é como um espelho, de onde
se libertam as tuas mãos, os dedos, um joelho,
olhos que beijo num murmúrio de segredos.


E pedes-me significados, símbolos, primeiros
e segundos sem idos. Não te sei dizer senão que
corpo é o teu corpo, centro um secreto umbigo,
pele a mais branca neve no horizonte desta
subida leve. Se me estendes os braços, entro
num abrigo de floresta: se me abres os ramos,
é na mais doce gruta que entramos.


Precipitam-se sinónimos, adjectivos sem
objectivo, pronomes enfáticos e possessivos,
sílabas perdidas na falésia do desejo. Mas
fecho o livro. Estou farto de palavras, é a ti
que eu quero. E faço-as voltar até de onde
nasceram: cabelos, lábios, ombros, seios, até
o ventre, e o que entre as coxas se esconde.


Nuno Júdice
, O estado dos campos.

Unfortunately...


 Everything exists in limited quantity
- especially happiness.

Pablo Picasso

Porque é primavera.

imagem vista aqui.

Recomeço.

In Memoriam.

Os que já caíram, ah!

No Paraíso, na rua, na História,
Na escada.
Caiu Humpty Dumpty
Na aventura de Alice.
Caiu a própria Alice.
Caiu a mãe de Hamlet,
Caem as folhas no outono,
Mais tristes quando cai a tarde.
E depois do primeiro homem
E da primeira mulher
Todos os grandes caem
Em seu dia e hora.
Caiu Saul, e Jonas, e Golias,
E também os muros que cercavam
Os poderosos donos de Jericó.
Caiu Tróia e caíram os romanos.
Lúcifer levou nove demorados dias
Em sua assustadora queda,
A mais profunda queda registrada.
Há grandeza
Nos homens que caem.
Não se respeitam, porém, as decaídas.
Mas ambos ocupam o mesmo lugar
Na composição eterna da caída
Humana. A gravidade é a negação da vida
Desde a invenção dos tempos.


Millôr Fernandes
[16.08.1924 - 27.03.2012]

terça-feira, 27 de março de 2012

Expulso por bom motivo.

Cresci como filho
De pessoas que têm bens.
Meus pais
Puseram-me um colarinho em volta do pescoço e
Habituaram-me a ser servido
E ensinaram-me a arte de mandar.
Mas quando cresci e olhei à minha volta
Não me agradaram nem as pessoas da minha classe,
Nem o comando nem tampouco ser servido.
Abandonei minha classe e associei-me
Às pessoas inferiores.


Bertold Brecht

Regresso.

Constatações.

segunda-feira, 26 de março de 2012

O portugal futuro.

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
à sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


Ruy Belo

Ditos.



As palavras dançam nos olhos das pessoas conforme o palco dos olhos de cada um.

Almada Negreiros

Lema do dia.

Recomeço.

sábado, 24 de março de 2012

Saturday evening.

O artista.

Embora o artista em todos os períodos da sua vida permaneça mais próximo da infância, para não dizer mais fiel do que o homem especializado na realidade prática, muito embora se possa afirmar que ele, ao contrário deste último se mantém continuamente no estado sonhador e puramente humano da criança brincalhona, o caminho que transpõe a partir dos primórdios intactos até às fases tardias, jamais imaginadas do seu devir, é infinitamente mais longo, mais aventuroso, mais emocionante para o espectador, do que o do homem burguês, para o qual a reminiscência de também ter sido criança em outros tempos nunca fica tão prenhe de lágrimas.

Thomas Mann, Doutor Fausto.

Weekend.

Democracia. Ou talvez não.

Durante as manifestações da passada quinta-feira, dia 22 de Março, em Lisboa, pelo menos dois jornalistas terão sido agredidos. A agressão de um deles, Patrícia Melo Moreira, da AFP, foi fotografada pela Reuters e corre mundo. O relato do que lhe aconteceu, feito na primeira pessoa, pode ler-se aqui.
Não se trata de uma questão de segurança ou de ordem pública.
Com atitudes destas por parte das forças policiais, o que fica verdadeiramente posto em causa é o estado da nossa Democracia.


As fotos são de Hugo Correia/Reuters e foram vistas aqui.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Programa da noite.

Carta ao IRS.

Primeiras impressões.

A política de “abutre” de Marine Le Pen

A senhora chama-se Marine Le Pen e sucedeu ao seu pai, Jean-Marie Le Pen, como presidente da Frente Nacional, partido da extrema-direita francesa. Se o pai já tinha habituado o mundo às suas ideias muito particulares sobre temas como leis da imigração, eutanásia, aborto ou restauração da pena de morte, Marine Le Pen não lhe quer ficar atrás. Há cerca de 30 anos, François Mitterand aboliu esta lei medieval e hoje apenas a Bielorrússia mantém, na Europa, a pena de morte. Marine Le Pen quer colocar a França neste patamar.

Os atentados cometidos em Toulouse (França), alegadamente, por um francês de origem argelina, Mohamed Merah, contra dois pára-quedistas franceses e quatro outras pessoas (três delas crianças), em frente a uma escola judia, deram oportunidade aos abutres políticos de mostrar que voam alto, mas estão sempre alerta. De atalaia para que, mal tombe o primeiro corpo, desçam em voo picado a reclamar o seu quinhão.

Foi assim a atitude política de Marine Le Pen perante a dor das famílias enlutadas, apressando-se a dizer que “o risco fundamentalista foi subestimado” em França. Nada de condolências às famílias, campanha presidencial suspensa apenas por pouco mais de 24 horas e toca de pegar no megafone para exaltar os fantasmas do terrorismo islâmico e, bem assim, de propor medidas severas contra a imigração. Como se a França não tivesse sido construída e reconstruída ao longo das últimas décadas à força do trabalho de tantos estrangeiros que procuram, naquele país, uma vida melhor. E para melhor demonstrar as suas ideias, Marine Le Pen propõe-se “ressuscitar” a pena de morte.

Este jogo de medos, esta manipulação do sentimento de insegurança dos cidadãos, esta demagogia e aproveitamento face à perda de vidas humanas mais não é do que olhar o problema do extremismo islâmico a partir de um outro extremo. Ambos condenáveis, ambos merecedores de reflexão e de acções concretas.

Não se pode simplesmente fechar fronteiras e apertar o cerco policial aos “les Arabes”. Como se viu pelo exemplo de Mohamed Merah, auto-intitulado “mujahedin” (guerreiro) da Al-Qaeda, este foi detido pela polícia do Afeganistão, entregue aos militares norte-americanos e deportado para França. Mas escapou sempre à prisão, gabando-se de atravessar fronteiras de países sob vigilância sem a ajuda de “facilitadores”. Com um cadastro de violência de longa data (foi condenado 15 vezes), Merah, de 23 anos, justificou os assassinatos pela vontade de vingar a morte das crianças palestinianas às mãos das forças militares estrangeiras. O primeiro-ministro da Palestina, Salam Fayyad, reagiu de pronto e bem: “Já é tempo de estes criminosos deixarem de reivindicar os seus actos criminosos em nome da Palestina e de fingirem que defendem a causa das suas crianças.” O bom senso imperou.

Portanto, não se trata aqui de subestimar o “risco fundamentalista”. Trata-se, isso sim, de apertar a malha de segurança a TODOS aqueles que atentem contra os Direitos Humanos, qualquer que seja a sua nacionalidade ou credo. Fazer política à espera que haja cadáveres é deplorável e abona pouco a favor do carácter de quem se candidata a dirigente máximo do país da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Homens como Helmut Kohl, François Mitterrand ou Robert Schumann devem andar às voltas.

A minha crónica de hoje, no P3.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Ditos.



As coisas mais insignificantes têm, às vezes, maior importância e é geralmente por elas que nos perdemos.

Fyodor Dostoievsky, Crime e Castigo.

Em dia de Greve Geral.

Há homens que lutam um dia, e são bons;
há homens que lutam por um ano, e são melhores;
há homens que lutam por vários anos, e são muito bons;
há outros que lutam durante toda a vida, esses são imprescindíveis. 

Bertold Brecht, Os que lutam.


[Declaração de interesses: Não alinhei em nenhuma das greves gerais anteriores, nem hoje estou em greve. Mas respeito e, sobretudo, admiro aqueles que, ainda que com prejuízo pessoal, não se acomodam, não se conformam e não se acobardam.]



Dificuldades.

Note to myself.

In Memoriam.

I sacrifici

Se ho potuto studiare
lo devo a mia madre
che firma con una croce.

Se conosco tutte le città
che stanno in capo al mondo
è stato per mia madre, che non ha mai viaggiato.

leri l'ho portata in un caffè
a far due passi
perché quasi non ci vede più niente
- Sedetevi, qua. Cosa volete? Un bignè?


Tonino Guerra
(16 marzo 1920 – 21 marzo 2012)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia.

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.


E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa, Autopsicografia.

Note to myself.

Dia Mundial da Árvore.


Na natureza, nada se cria,
nada se perde, tudo se transforma.

Antoine Lavoisier

Wednesday morning.

terça-feira, 20 de março de 2012

Long night.

Decepção à regra

Sentar-me e
ver os outros passar é o
meu exercício favorito. Entretém.
Não esgota.
É gratuito. Neste meu jogo-do-não
são os outros que passam
(é aos outros que reservo a tarefa
de passar). Lavo daí os pés.
Escrevo de dentro da vida.
Pode até parecer que assim não
chego a lugar algum mas também quem
é que quer ir
ao sítio dos outros?

João Luís Barreto Guimarães


Planos de Primavera.

Inscrições matinais.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Pai.


Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.

Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.

Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.

Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.

Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.

Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.


Pablo Neruda, Crepusculário

Para Ti.

Para ti, meu Avô, meu Pai de sempre; serás sempre o meu Pai, todos os dias - todos. Ainda que já cá não estejas para me passar a mão pelos cabelos, para me levares a andar de bicicleta, para me deixares subir aos teus ombros ou para me assobiares e chocalhares as chaves quando chegavas a casa.
Continuo a ouvir-te, Avó. Deve ser por isso que, todas as manhãs, ainda te dou os bons dias. Feliz dia do Pai, Avô.


Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.


José Luís Peixoto, Morreste-me.

A essência.



Gosto das coisas de dentro.
O que está por fora muda a cada estação.
A essência, não.

Cecília Meireles.
 

Dia do Pai.

Dia do Pai.

domingo, 18 de março de 2012

As mãos.

As mãos de Ana eram velhas. Os dedos eram grossos e tinham riscos feitos pela lâmina da navalha de retalhar azeitonas. As palmas das mãos eram grossas  e tinham o toque da superfície serrada de um tronco. As mãos do velho Durico eram magras e escuras. As costas das mãos, quando as estendia debaixo de um candeeiro de petróleo, eram suaves. As unhas eram certas por serem cortadas com uma navalha, à noite, quando a fogueira lhe iluminava o rosto. As palmas das mãos cheiravam a terra castanha e a fumo.

José Luís Peixoto, Cal.

quinta-feira, 15 de março de 2012

De repente a minha vida

...De repente a minha vida
Sumiu-se pela valeta...
Melhor deixá-la esquecida
No fundo de uma gaveta...

(Se eu apagasse as lanternas
Para que ninguém mais me visse,
E a minha vida fugisse
Com o rabinho entre as pernas?...)



Mário de Sá-Carneiro

sexta-feira, 9 de março de 2012

A banda sonora da minha noite...



No teu poema
existe um verso em branco e sem medida,
um corpo que respira, um céu aberto,
janela debruçada para a vida.
No teu poema 
existe a dor calada lá no fundo,
o passo da coragem em casa escura
e, aberta, uma varanda para o mundo.
Existe a noite,
o riso e a voz refeita à luz do dia,
a festa da Senhora da Agonia
e o cansaço
do corpo que adormece em cama fria.
Existe um rio,
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai
ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.
No teu poema
existe o grito e o eco da metralha,
a dor que sei de cor mas não recito
e os sonhos inquietos de quem falha.
No teu poema
existe um cantochão alentejano,
a rua e o pregão de uma varina
e um barco assoprado a todo o pano.
Existe um rio
a sina de quem nasce fraco ou forte,
o risco, a raiva e a luta de quem cai
ou que resiste,
que vence ou adormece antes da morte.
No teu poema
existe a esperança acesa atrás do muro,
existe tudo o mais que ainda escapa
e um verso em branco à espera de futuro. 
 
José Luís Tinoco

Is there?

Ditos.


O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê! 

Florbela Espanca

Expectations.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Quando a morte vier

quando a morte vier, meu amor,
fechamos os olhos para a olhar por dentro
e deixemos aos nossos lábios o murmúrio
da palavra branda jamais pronunciada
e às nossas mãos a carícia dispersa;
relembramos o dia impossível,
belo por isso e por isso desprezado,
e esqueçamos o que nos não deixaram ver
e o resto que sobrou do nada que possuímos,
deixemos à poesia que surge
o pranto de quem a trocou para comer
e os passos sem rumo pelas ruas hostis;
deixemos à carne o que não alcançámos,
e morramos, então, naturalmente…


Tomaz Kim

Síria: uma barbárie sem resposta.

Até quando o mundo (dito civilizado) vai continuar a consentir na barbárie que o regime sírio de Bashar Al Assad está a perpetrar contra o seu próprio povo? Quantas mais mortes serão precisas, para além dos mais de 7.500 civis que, só na cidade de Homs, morreram no último ano às mãos dos algozes daquele ditador? Acaso duvidarão os responsáveis políticos das grandes potências mundiais que as imagens hoje divulgadas pela TV britânica “Channel 4” são reais? Para quem, há 21 anos, se mostrou tão solícito a libertar o pequeno “petrolado” do Kuwait das garras do Iraque, quantas mais imagens e relatos constantes dos jornalistas serão necessários para uma intervenção séria e decisiva?

Uma mão cheia de perguntas para outras tantas respostas vazias. Infelizmente, temo que o vídeo agora exibido pelo “Channel 4” não passe de um mero “trailler” deste filme de terror. Explique-se: um funcionário do hospital militar de Homs filmou às escondidas o que parecem ser pacientes torturados por electrocussão, chicoteados, com pernas e pés partidos, operados sem anestesia, atirados de cabeça contra as paredes, amarrados às camas e sem água.

O canal britânico ressalva que não foi possível confirmar, de fonte independente, a veracidade das imagens. Mas, pelo que já foi possível ver nas imagens dos bombardeamentos captadas pelos jornalistas internacionais, é bem provável que seja uma cruel realidade. Outros relatos de refugiados falam em execuções sumárias: os prisioneiros são, simplesmente, degolados pelos militares, como ouviram dois enviados da BBC àquela região. Um massacre sem fim à vista.

Os condenados a tal sorte são de todo o género, de civis revoltosos capturados pelas forças leais a Al Assad a soldados que se recusaram a acatar ordens. Um dos feridos terá apenas 14 anos.

Cidade-berço da revolta que o povo sírio tem travado contra o duro regime ditatorial de Bashar Al Assad, Homs tem no bastião rebelde de Bab Amro o seu local mais sangrento: alvo de violentos bombardeamentos ininterruptos, está isolado do resto do mundo. Nem a Cruz Vermelha Internacional ou o Crescente Vermelho sírio conseguem acudir aos milhares de feridos ali sitiados.

Todos os acordos internacionais para conflitos armados (é curioso que se façam regulamentos para situações em que se mata ou se morre) são claros quando referem que a ajuda humanitária deve ser facilitada pelas partes beligerantes. Perante isto, de que está o mundo à espera? Quantos mortos mais vai ser preciso inscrever nesta página sangrenta da história mundial? A apatia dos governantes perante a barbárie em curso na Síria mancha de sangue as mãos da comunidade internacional que, ainda que não consinta nesta crueldade sem nome, não reage, não a impede e, sobretudo, não auxilia as vítimas.

A minha crónica, publicada hoje no P3.


Constatações.