terça-feira, 24 de maio de 2011

A violência das coisas.

O Tribunal da Relação do Porto lavrou acórdão em 13 de Abril passado, revogando uma decisão do tribunal colectivo (1ª Vara Criminal do Porto) que condenara ‘o arguido como autor material de um crime de violação p. e p. no art.º 164º n.º 1 do C. Penal, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova’. O arguido fora também condenado a pagar uma indemnização à vítima.

A Relação absolveu o arguido do crime por que foi condenado, bem como do pedido cível formulado pela assistente, baseando a decisão parcialmente na alteração da matéria de facto, por questões técnicas de admissibilidade e corroboração de meios de prova (depoimentos da vítima e da sua mãe), mas também em argumentos de qualificação jurídica. Nomeadamente, o Tribunal da Relação entendeu que o crime de violação, tal como está definido no Código Penal, implica um confronto físico, violento, entre violador e vítima (‘O agente só comete o crime se, na concretização da execução do acto sexual, ainda que tentado, se debater com a pessoa da vítima, de forma a poder-se falar em “violência”). Segundo os juízes que formaram a maioria, não teria existido violência (ou prova dela) neste caso, nem outro meio de execução da violação que a lei prevê em alternativa (ameaça grave, colocação em estado de impossibilidade de resistência).

O que parece particularmente estranho nestes raciocínios é por um lado o ressurgimento de uma imagem (proto)típica da violação como uma situação de confronto físico em que o homem agride e a mulher se debate e grita por socorro, como se defendeu no Direito antigo (quer no Direito Comum quer na Common Law); e por outro a invocação de um paradigma de protecção minimalista da liberdade de auto-determinação sexual para justificar um entendimento muito estreito da previsão legal, como se o entendimento liberal contra o padrão dos bons costumes significasse uma efectiva desprotecção dessa liberdade.

Julgo que na fundamentação da decisão há vários equívocos. O primeiro e talvez mais importante reside justamente nesta absurda interpretação da lógica de protecção das normas que tipificam os crimes sexuais como estreitando o crime de violação às situações de agressão física extrema com resistência activa e notória por parte da vítima. O segundo é o próprio entendimento do que significa a palavra ‘violência’ na definição legal do tipo da violação. Muitos dos velhos preconceitos sobre a possibilidade de violar uma mulher espreitam aqui em vários pontos do Acórdão, quer na decisão e sua fundamentação, quer na transcrição das gravações da prova.

‘You cannot thread a moving needle’: Como é possível violar a boca de uma mulher com um pénis ‘só’ agarrando-lhe a cabeça?
          [Sr. Proc.: Mas ele fez algum gesto que a forçasse a manter o pénis
           dele na sua boca?
           Assit. Sim, com a cabeça. Agarrando-me na cabeça...
           Adv. do arguido: Porque é que a Srª não fechou a boca,
           um gesto tão simples?]

A mulher que realmente não quer ser violada debate-se e grita e defende-se até à morte: ‘O agente só comete o crime se, na concretização da execução do acto sexual, ainda que tentado, se debater com a pessoa da vítima, de forma a poder-se falar em “violência”.

      [‘A ofendida levantou-se e tentou dirigir-se para a porta de saída;
        no entanto, o arguido, aproveitando-se do estado de gravidez
        avançado que lhe dificultava os movimentos, agarrou-a, virou-a de
        costas, empurrou-a na direcção do sofá fazendo-a debruçar-se sobre
        o mesmo, baixou-lhe as calças (de grávida) e introduziu o pénis
        erecto na vagina até ejacular.’]

A nossa Justiça tem ideias muito estranhas sobre o que seja violência. Pelos vistos, esta matéria de facto indicia sexo consensual, não forçado. Pensava eu que o cerne da violação era forçar alguém a ter relações contra a sua vontade, forçando-a ou constrangendo-a, por violência ou ameaça, ou aproveitando a sua vulnerabilidade. Mas o Tribunal da Relação do Porto tem uma ideia diferente: a violação verdadeira implica sangue, tiros, gritos lancinantes e uma luta corpo a corpo. Como nas séries de televisão, que certamente os juízes andam a ver em excesso.

Teresa Pizarro Belezaaqui.
[13.Maio.2011]

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