Partilham as refeições no mais absoluto silêncio. Assim acontece desde que se conheceram, há muitos anos.
O empregado de mesa aproxima-se e pergunta o que desejam. Não dizem nada, apontam para a ementa.
O funcionário, apesar de estranhar, acena com a cabeça e elabora uma vénia.
- Espero não incomodar, mas gostaria de lhe dizer uma coisa - diz um rapaz de porte distinto e testa inteligente, aparecido do nada. - Parece-me da mais elementar justiça fazê-lo - rematou.
O marido fita-o calmamente, embora um pouco incomodado com o desrespeito pelo silêncio que aprecia.
O rapaz relanceia os olhos à mulher e ruboresce, não de vergonha mas de cólera (ou talvez de ambas). Vira-se novamente para o marido.
- A sua esposa...
Pára, engasga-se. É-lhe visivelmente difícil comunicar a mensagem.
- A sua esposa tem um amante.
Noutra circunstância, com outros protagonistas, o silêncio do marido poderia ter sido interpretado como incredulidade, assombro, ou inclusive choque, todavia estávamos na presença de um homem peculiar - intransigente no que tocava a rituais antigos de família.
- E tenho como prová-lo.
Faz uma pausa.
- Até porque o amante sou eu.
Do bolso retira fotografias e outros objectos que atestam a sua afirmação. O marido observa as provas, faz que sim com a cabeça e desvia a atenção do rapaz.
Perante semelhante indiferença, o rapaz ruboresce novamente (agora de vergonha, definitivamente) e desaparece.
O marido sorri para a mulher, que assim volta a sentir o chão debaixo dos pés. Afinal, era muitos os anos de partilha e confiança, de entrega e amor - em suma, eram muitos os anos de casamento. Nada que um rapaz pudesse arruinar com um simples gesto.
Terminam a refeição, o marido paga a conta e saem do restaurante. O sorriso do marido mantém-se enquanto caminham lado a lado.
Nos minutos seguintes, várias coisas aconteceram: o trânsito tornou-se caótico, uma multidão reuniu-se num enorme círculo, polícias e médicos fizeram registos e tomaram diligências.
No centro de tanta confusão, uma mulher jaz estropiada na linha do metro de superfície. A composição varreu-a e nela apenas se distingue a boca, muito aberta, como se tivesse deixado uma frase a meio.
Entre a multidão, um homem segurando um papelinho com números observa em silêncio o desenrolar daquela história ruidosa.
Sorri.
imagem de Narcisa Eichin. |
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