O tic-tac do coração calara-se de repente. A agulha que desenhava uma linha quebrada no papel do electrocardiograma suspendera-se, quieta. Um borrão no papel assinalava o instante exacto em que o coração parara de bater. Do fundo do coma onde estava mergulhado há dias, ele ouviu distintamente o silêncio das máquinas e depois a campainha de alarme que soou na mesa das enfermeiras da sala de reanimação. Viu-as correr até à sua cama, a 6-A, viu-as ligar para a sala dos médicos pelo intercomunicador, viu-as preparar a máquina de reanimação. Viu toda a agitação e alvoroço dos seus gestos, em contraste com a absoluta calma que ele experimentava. Sentiu ternura por elas, por se preocuparem assim consigo. Apeteceu-lhe dizer-lhes que morrer não era afinal tão difícil.
Estava morto há uns cinco minutos quando chegou a médica. Mesmo de olhos fechados, ele via tudo, mesmo morto, ouvia as vozes e sentia tudo. Viu que a médica era nova, tinha uns olhos azuis, meigos e lindos, olheiras fundas, um pescoço comprido e magro. Ela pousou-lhe as mãos no peito e pressionou-o levemente. Estava a falar com ele em pensamento e ele conseguia ler-lhe o pensamento: «Vou tentar trazer-te de volta à vida. Mas não sei se consigo e nem sei se é isso que queres. Neste instante, tu estás morto e sabes infinitamente mais do que nós. Só tu sabes, mas não me podes dizer, se queres continuar a viver ou se queres ficar em paz. Vou tentar que vivas, perdoa-me se isto força a tua vontade.» Encostou-lhe os eléctrodos ao peito, e deu-lhe uma descarga contínua e profunda. Pareceu-lhe que o peito tinha rebentado, a dor foi atroz e ele gritou por dentro, sem mover a boca. Depois, no silêncio que se tinha feito na sala, recomeçou a ouvir outra vez o mesmo tic-tac monótono de um coração a bater e era o seu. Ela tinha-lhe interrompido a morte, tinha-o chamado de volta, como só os deuses podem. Havia um destino traçado e ela trocara-lhe as voltas.
Saiu do hospital dez dias depois e lentamente retomou a sua vida. Era uma sensação estranha estar de regresso ao mundo dos outros e que agora voltava a ser também o seu, caminhar no meio dos outros, ouvi-los falar, rirem-se ou queixarem-se da vida, e de novo ele sentia, como na sala de reanimação, a sensação de ser um semi-ausente, vendo os outros de fora, como um espectador. Ao cabo de um mês desta difícil adaptação, decidiu-se por mandar um ramo de flores à médica dos olhos azuis, com um cartão onde escreveu: «Trazer-me de volta à vida foi um trabalho bonito, mas incompleto. Não quererá você completá-lo?» A resposta demorou outro mês a chegar e chegou ao fim de um dia em que ela se encontrou a si própria exausta e perdida, depois de doze horas de hospital e de ter desligado as máquinas a dois doentes que lhe morreram nas mãos. Eram onze da noite, ela despiu a bata, caminhou pelo longo corredor do hospital até à saída, imaginou a casa vazia à sua espera, o jantar frio para ser aquecido, o silêncio à sua volta e uma almofada para pousar a cabeça. Pensou que as coisas deveriam fazer mais sentido do que isso e foi então que lhe telefonou, porque, quem sabe, talvez ele tivesse uma resposta para ela ou ela uma resposta para ele.
Foi um processo longo e difícil, como sempre o são as aproximações entre duas pessoas habituadas a estarem sozinhas. Primeiro parece fácil, é o coração que arrasta a cabeça, a vontade de ser feliz que cala as dúvidas e os medos. Mas depois é a cabeça que trava o coração, as pequenas coisas que parecem derrotar as grandes, um sufoco inexplicável que parece instalar-se onde dantes estava a intimidade. É preciso saber passar tudo isso e conseguir chegar mais além, onde a cumplicidade - de tudo, o mais difícil de atingir - os torna verdadeiramente amantes. Mas eles conseguiram-no, por vezes pisando os destroços do que parecia definitivamente perdido, mas seguindo em frente, quase com o desespero dos náufragos. Estão juntos há oito anos, para a vida, dizem eles, e eu acredito. Há oito anos que ela descansa o seu cansaço no ombro dele, que ele alisa o seu pescoço comprido, lhe apaga as olheiras e adormece com uns olhos azuis e ternos vigiando o seu sono.
Miguel Sousa Tavares
Cary Grant & Ingrid Bergman, Notorious (Alfred Hitchcock, 1946) |
Sem comentários:
Enviar um comentário