segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Explicação da Eternidade



devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.


os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.


por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.


os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.


foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto

Eu queria.

Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,
e também a Bondade,
e a Sinceridade,
e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração
Então poderia dizer-vos:
"Meus amados irmãos,
falo-vos do coração",
ou então:
"com o coração nas mãos".


António Gedeão

Para aquecer a alma.

Monday morning.

domingo, 29 de janeiro de 2012

A Voz que Nos Rasgou por Dentro

De onde vem a voz que
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?

Esteve aqui — aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.

E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos re-
conhecido outrora, onde está? A voz
que dança de noite, no inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.

Diz: "Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos."

Como se a ouvíssemos.

Nuno Júdice
 

Domingo de sol.

sábado, 28 de janeiro de 2012

A vida.

Se a vida não fosse tão insubstituível
talvez ousássemos utilizá-la.
Porém arrumamo-la na prateleira
como um vistoso par de sapatos
que é bonito de se ver
mas não para uso diário.
Assim, continuamos por aí sentados
numa expectativa descalça.

Margareta Ekström

imagem de madgirl
















Saturday evening.

Tarde de mimo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Legenda.



A vida é o que fazemos dela.
As viagens são os viajantes.
O que vemos,
não é o que vemos,
senão o que somos.

Fernando Pessoa

O juiz sem medo #1

Gosto de gente com coragem. Gosto de gente que não se acomoda, que não se limita a fazer apenas o que se espera, que não se contenta com o cumprimento normal das suas funções. Gosto de pessoas que arriscam, que fazem mais do que se lhes pede, que lutam incessantemente por mais e por melhor.

Por isso, admiro desde há muito dois grandes juízes: Giovanni Falcone e Baltasar Garzón. O primeiro foi morto em 1992 num atentado, a mando de “Toto” Riina, um dos padrinhos da máfia siciliana. O segundo está a ser julgado em tribunal, num julgamento “kafkiano” que teve início no passado dia 24 de Janeiro.

Baltasar Garzón sempre foi uma figura controversa; considerado um herói por alguns e um megalómano por outros, passaram pela sua secretária, ao longo dos 22 anos de carreira, variados casos célebres e controversos: tráfico de droga, terrorismo, tortura, corrupção e até crimes de guerra. Em todos eles, consegue perceber-se um denominador comum na audácia de Garzón – a defesa das vítimas, a preocupação com a reparação do seu sofrimento. Em todos eles, paralelamente, foi somando inimigos (e sim, os Estados Unidos da América também estão metidos nisto).

Até que este super-juiz resolveu investigar o desaparecimento de mais de 114.000 pessoas durante a guerra civil espanhola e a ditadura franquista que se lhe seguiu. A pedido das Associações da Memória Histórica promoveu a exumação de cadáveres de valas comuns (entre os quais o do poeta Federico Garcia Lorca) e ordenou ao Ministério do Interior a identificação dos dirigentes da Falange Espanhola (um partido político fascista reconhecido durante a ditadura de Franco e tornado ilegal em 1977, embora ainda em actividade) à data dos factos.

Tanto voluntarismo foi considerado excessivo por gente demasiado influente. Por isso, em Maio de 2010, Garzón foi suspenso e foram-lhe instaurados três processos-crime. Um deles acusa-o de abuso de poder na investigação do genocídio cometido por Franco, por alegada violação da Lei da Amnistia, aprovada em 1977 e que impede a Espanha de olhar para o passado de ditadura e julgar os responsáveis pelos crimes cometidos durante esse período.

José Saramago escreveu em Fevereiro de 2010 que “a Lei da Amnistia foi uma maneira hipócrita de tentar virar a página, equiparando as vítimas aos seus verdugos, em nome de um igualmente hipócrita perdão geral”. Mas a questão ultrapassa a esfera da hipocrisia: a ONU interpelou Espanha à revogação da Lei da Amnistia, já que esta viola claramente o direito internacional, que considera estes crimes como crimes de direito internacional e, portanto, não podem ser aplicadas aos seus autores quaisquer amnistias ou indultos, sendo imprescritíveis. Até agora, nada foi feito.

Baltasar Garzón está a ser julgado pela sua bravura, pela sua visão universalista do Direito e, sobretudo, pela sua preocupação com a reparação do sofrimento das vítimas. Se vier a ser condenado, será impedido de exercer funções durante 20 anos – será a morte da sua carreira.

Aconteça o que acontecer, ficarão gravadas as palavras, dirigidas aos filhos, escritas no final do seu livro “Um Mundo sem Medo”: "Queridos Maria e Baltasar: Um mundo sem medo. Será só uma utopia? Um sonho inalcançável? Penso sinceramente que é possível construir um mundo sem medo, ou melhor dizendo, um mundo mais justo. [...] Os direitos humanos não se podem adiar, hipotecar, dissimular, escamotear, distorcer, mutilar ou perverter.”

Publicado ontem, no P3.

Variações sobre o mesmo tema.

Definições.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

As velhices.

Encontro JMC sentado num banco do jardim. Está recatado, em solene solidão, como se só ali, em assento público, encontrasse devida privacidade. Ou como se aquele fosse seu recinto de toda a vida morar. Em volta, o tempo intacto, só com horas certas.
Nunca soube o seu nome por extenso. Creio que ninguém sabe, nem mesmo ele. As pessoas chamam-no assim, soletrando as iniciais : jota eme cê.
Saúdo-o, em inclinação respeitosa. Ele ergue os olhos como se a luz fosse excessiva. Um subtil agitar de dedos: ele quer que eu me sente e o salve da solidão.
- Lembra que sentámos neste mesmo lugar há uns anos atrás?
- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando muitas velhices.
E deixámo-nos, calados. Vou lembrando os tempos em que este homem magro e alto desembocava neste mesmo jardim. Acontecia todo o final de tarde. Recordo as suas confidências. Que ele, sendo devidamente casado, se enamorava de paixão ardente por infinitas mulheres. Não há dedos para as contar, todinhas, dizia.
- A vida é um colar. Eu dou um fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas.
Sempre que fazia amor com uma delas não regressava directamente a casa. Ia, sim, para casa da sua velha mãe. A ela lhe contava as intimidades de cada novo caso, as diferentes doçuras de cada uma das amantes. De olhos fechados, a velha escutava e fingia até adormecer no cansado sofá de sua sala. No final, tomava nas suas mãos as mãos do filho e ordenava que ele tomasse banho ali mesmo.
- Não vá a sua mulher cheirar a presença de uma outra, dizia.
E JMC se enfiava na banheira enquanto a velha mãe o esfregava com uma esponja cheirosa. Acabado o banho, ela o enxugava, devagarosa como se o tempo passasse por suas mãos e ela o retivesse nas dobras da toalha.
- Continue, meu filho, vá distribuindo esse coração seu que é tão grande. Nunca pare de visitar as mulheres. Nunca pare de as amar.
- E o pai, sempre lhe foi fiel?
- Seu pai, mesmo leal, nunca poderia ser fiel.
imagem de multicurious, em Deviantart
- E porquê?
- Seu pai nunca soube amar ninguém.
Agora, tantos anos passados, quase não reconheço o mulherengo homem alto e magro.
- Desculpe perguntar, JMC. Mas o senhor ainda continua visitando mulheres?
Ele não responde. Está absorvido, confrontando unhas com os respectivos dedos. Ter-me-á ouvido? Por recato, não repito a pergunta. Após um tempo, confessa num murmúrio:
- Nunca mais. Nunca mais visitei nenhuma mulher.
Uma tristeza lhe escava a voz. Me confessava, afinal, uma espécie de viuvez. Foi ele quem quebrou a pausa:
- É que sabe? Minha mãe morreu.
Meu coração sapateia, desentendido. Pudesse haver silêncio feito da gente estar calada. Mas esse silêncio não há. E nesse vazio permanecemos ambos até que, por entre o cinzentear da tarde, surge Dona Graciosa, esposa de JMC. Está irreconhecível, parece deslocada de um baile de máscaras. Vem de brilhos e flores, mais decote que blusa, mais perna que vestido. Me soergo para lhe dar o lugar no banco. Mas ela se dirige ao marido, suave e doce:
- Me acompanha, JMC?
- E você quem é, minha flor?
- O meu nome você me há-de chamar, mas só depois...
- Depois? Depois de quê?
- Ora, só depois.
De braços dados, os dois se afastam. A noite me envolve, com seu abraço de cacimbo. E não dou conta de que estou só.

Mia Couto, O fio das missangas

Perturbações.

Quando as palavras dos outros dizem o que nos vai no coração.

As pessoas não morrem: andam por aí. Quantas vezes as sinto à minha volta, não apenas a presença, o cheiro, a cumplicidade silenciosa, palavras que saem da minha boca e me não pertencem, penso

- Não fui eu quem disse isto

e realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se, afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis

(invisíveis?)

densas de humanidade, tão próximas. Umas alturas muitas, outras uma ou duas apenas por terem que fazer noutro lado, no caso de saírem não vale a pena preocuparmo-nos: têm a chave e a prova que têm a chave está em que entram, silenciosas, amigas, penduram os casacos no bengaleiro, sorriem. Onde se encontra o pai? Na cadeira do costume. Onde se encontra a avó? Lá fora, no quintal, a alinhar a roupa no frio, ou a fazer festas à cadela com a mão leve de sempre. Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entendermos que não existe ninguém lá em baixo. Para quê visitar ausências? Uns pardais nos choupos, nada. Que sítios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto. Segredam-nos

- Não faleci, sabes?

e não faleceram, é verdade, continuam, não na nossa lembrança, continuam de facto, pertinho. Quase sem ruído mas, tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos. Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixámos de estar juntos. Nunca deixámos de estar juntos: Quando é necessário poisam-nos a palma no ombro. Na época em que andei muito doente houve sempre palmas no meu ombro, a ajudarem. E agora, na mesa a escrever isto, espreitam o papel, sabem, melhor do que eu, as palavras que se seguem. O meu avô

- Não te aborrece escrever?

ele, a quem nunca vi ler um livro, instalava-se diante dos canteiros, em silêncio, a olhar as árvores, suponho que a olhar o Brasil da sua infância. Avôzinho. Tão diferente de mim: muito moreno, de cabelo encaracolado, lindo. Continua por aí, não deixe de continuar por aí. Um amigo meu, que disse a missa de corpo presente da mãe, contou-me que, ao voltar a casa semanas depois, a primeira pergunta que fez foi

- A mãe?

seguro de a achar num compartimento qualquer. E, de certeza

(isto já não me contou)

que deu com ela. Que dá com ela a cada passo. Nem é preciso interrogar seja quem for, a mãe encarrega-se de resolver o problema, haverá algum problema que uma mãe não resolva? Não é infantilidade da minha parte afirmar isto: é assim. Frase da minha, ontem

- A gente tem que se divertir ao divertir as crianças, porque se a gente não se divertir elas não se divertem

e eu de boca aberta. É que não há coisa mais séria que o divertimento. Os nossos brinquedos foram uma coisa importantíssima para o meu pai. Confiscava-nos alguns para seu gozo pessoal, secreto. A gravidade apaixonada com que ele jogava. Tenho os postais que o meu avô lhe mandava da guerra em França, derramados de ternura para um garotinho de dois anos. O paizinho gostava que o Janjão, etc. Andam os dois por aí agora, o Janjão e o paizinho. E, se calhar, o Janjão continua a receber postais. E de certeza que o Janjão continua a receber postais. É verdade não é, senhor, que continua a receber postais? Mesmo de bata, no hospital, mesmo professor, mesmo importante? Postais. Há quanto tempo não recebo postais. Uma carta de vez em quando, papelada da agência, das editoras, dos tradutores mas postais, postais-postais, népia. E aqueles que andam por aí, sei lá porquê, não me mandam nenhum. Ou mandam-se a si mesmas e acham que chega. E, em certo sentido, chega. Mas umas palavrinhas, num cartão, caíam bem, há alturas em que umas palavrinhas num cartão caem bem. Não sei porquê mas caem bem. Não faço nenhum livro agora, ando vazio, e o vazio começa a inquietar-me. E se isto acabou? Terei secado? Apareceu-me uma coisa mas não dava, de maneira que fiquei sem nada. As falsas partidas, os equívocos, pensar que se consegue e não se consegue. O que julgarão desta impotência aqueles que andam por aí? Não lhes falo nisso, claro, é o género de assuntos que guardo para mim, guardo quase tudo para mim. A casa frente ao mar que nunca tive, por exemplo, tenho prédios feios. Algumas árvores e prédios feios. Que silêncio. A minha filha, no computador, entretem-se com o que chama um jogo de estratégia, em lugar de se sentar no meu colo. Olho para o écran e não percebo raspas, deve ser uma estratégia complicadíssima. Afirma que está a construir coisas. Ao menos que haja alguém ao pé de mim a construir seja o que for, compenetrada, solene. Se olhar bem o seu ombro vejo a palma que poisou nela. Há palmas tão bonitas quanto os pássaros. Daqui a nada, sem que ela dê por isso, começa a cantar. Basta um bocadinho de atenção para a ouvir cantar. E, ao cantar, começo a escutar as ondas. Uma após outra. Para mim. Atrás destas janelas e destas árvores há-de haver uma praia. Reparem.

António Lobo Antunes, na Visão.

À espera.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
e as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só


Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?


Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só.


António Ramos Rosa

Ditos.

Quadro de Bottelho (2007).

As acções de cada pessoa são boas ou más
consoante a maneira como as outras as comentam.

Camilo Castelo Branco

Lema do dia.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

L'Anima

imagem de Rasmus Lindersson.


Che grande scultore sei tu

che hai scolpito il tuo volto di pietra

tra le mie braccia

e ormai amore morto

mi sei diventato figlio

ti tengo sulle ginocchia

e piango perché il ricordo di te

mi pesa come un sepolcro.

Alda Merini

Cartas de amor.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)


Álvaro de Campos


















 

Declaração de interesses.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2012.
(vista no Facebook)
 

Início da semana.

domingo, 22 de janeiro de 2012

A banda sonora da minha noite...



Jograis e trovadores
Vagabundos de todos os tempos
Vocês são os meus parentes
Vocês são os meus iguais.

Não me peçam, construções
nem actos úteis, de momento
eu sou um adolescente
e nunca serei adulto.

Não me peçam, sobriedade
nem gestos medidos, cinzentos
Eu sou um arlequim
e só me visto de encarnado.

Como as flores sobre a terra
como as aves no céu
eu sou um adolescente
e nunca serei adulto.

Não me peçam, palavra certa
nem honra para quê, ter ilusões?
nem santo, nem herói, nem mestre,
eu sou um poeta e só posso dar canções.

Nem santo, nem herói, nem mestre,
eu sou um poeta e só posso dar canções. 

Desencontro, Tim.

Serão.

Tarde de biscoitos.





receita e imagens daqui.

Domingo de manhã.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Havemos de engordar juntos.

Havemos de engordar juntos.
Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.

As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.

É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.

Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.

As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.

Havemos de engordar juntos.

Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.

Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.

E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.

Nós acreditávamos.

Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho.

José Luís Peixoto, na Visão (Janeiro, 2012)
lido aqui.

Para ti.


Foi para ti que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre


Mia Couto

imagem vista aqui.
Para a minha companheira de gargalhadas e lágrimas, de sonhos e da dura realidade, dos caprichos e dos sonhos inconfessáveis. Parabéns, G. Muitos parabéns.

Recomeço.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Eu tenho um sonho

Eu tenho um sonho. Sonho com o dia em que o meu país se torna um verdadeiro Estado de direito democrático, sem falhas, onde todos os seus cidadãos podem exercer livremente todos os seus direitos. Sonho com o dia em que, no meu país, os deveres que incumbem a cada um de nós são cumpridos, não por serem deveres, mas pelo sentido do dever. Sonho com o dia em que, no meu país, o voto representa verdadeiramente o poder do povo, e não apenas uma rotatividade sem consequências.

Eu tenho um sonho. Sonho com o dia em que, no meu país, todos os cidadãos são iguais entre si, na diversidade que os caracteriza, e não diferentes uns dos outros numa unidade apenas formal. Sonho com o dia em que todas as crianças têm uma casa e uma família, biológica ou de coração, que os ama e que os ajuda a crescer com alegria, com solidez e em segurança. Sonho com o dia em que todos podem casar com quem quiserem, não apenas no papel, mas perante toda a sociedade, que os acolhe como sua parte integrante.

Eu tenho um sonho. Sonho com o dia em que, no meu país, os estudantes podem estudar sem limitações monetárias nem de qualquer ordem. Sonho com o dia em que, no meu país, todas as pessoas que procuram trabalho conseguem encontrá-lo e são justamente remuneradas pelo seu esforço e não em função do seu “valor de mercado”. Sonho com o dia em que os reformados, depois de uma vida de trabalho e de contribuição para a sociedade, recebem desta o necessário para um fim de vida digno e sem preocupações, tendo acesso, nomeadamente, a todos os cuidados de saúde sem custos ou a custos muito reduzidos.

Eu tenho um sonho. Sonho com o dia em que, no meu país, a opinião pública é formada, de forma livre e esclarecida, por todos os portugueses, com igual acesso ao conhecimento. Sonho com o dia em que os meios de Comunicação Social, sem excepção, contribuem de forma activa na prestação de informação verdadeira, correcta e independente, sem pressões e sem intromissões de quem quer que seja.

Eu tenho um sonho. Sonho com o dia em que não são (sempre) os mais fracos a suportar os desvarios dos mais fortes, nomeadamente no que respeita às finanças públicas. Sonho com o dia em que os meus compatriotas deixam o comodismo dos seus lares para ajudar, de coração aberto, aqueles que estendem a mão à caridade por terem sido abandonados pela sorte.

Sonho com o dia em que Portugal se torna numa terra de prosperidade, com orgulho na sua história, na sua tradição e nos seus costumes. Sonho com o dia em que deixamos de ser “alunos”, para passamos a ser mestres – mestres na defesa da liberdade da pessoa humana e da vontade popular, mestres na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Tal como estabelece o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.

Nota: este texto teve propositadamente como inspiração o célebre discurso de Martin Luther King Jr., em Washington, conhecido pela expressão “I have a dream”. Se ainda fosse vivo, teria comemorado, no passado dia 15 de Janeiro, 83 anos.

Publicado hoje, no P3.


imagem daqui.


Legenda.

imagem vista aqui.

A man's as old as he's feeling,
a woman as old as she looks.

Mortimer Collins