Gosto de gente com coragem. Gosto de gente que não se acomoda, que não se limita a fazer apenas o que se espera, que não se contenta com o cumprimento normal das suas funções. Gosto de pessoas que arriscam, que fazem mais do que se lhes pede, que lutam incessantemente por mais e por melhor.
Por isso, admiro desde há muito dois grandes juízes: Giovanni Falcone e Baltasar Garzón. O primeiro foi morto em 1992 num atentado, a mando de “Toto” Riina, um dos padrinhos da máfia siciliana. O segundo está a ser julgado em tribunal, num julgamento “kafkiano” que teve início no passado dia 24 de Janeiro.
Baltasar Garzón sempre foi uma figura controversa; considerado um herói por alguns e um megalómano por outros, passaram pela sua secretária, ao longo dos 22 anos de carreira, variados casos célebres e controversos: tráfico de droga, terrorismo, tortura, corrupção e até crimes de guerra. Em todos eles, consegue perceber-se um denominador comum na audácia de Garzón – a defesa das vítimas, a preocupação com a reparação do seu sofrimento. Em todos eles, paralelamente, foi somando inimigos (e sim, os Estados Unidos da América também estão metidos nisto).
Até que este super-juiz resolveu investigar o desaparecimento de mais de 114.000 pessoas durante a guerra civil espanhola e a ditadura franquista que se lhe seguiu. A pedido das Associações da Memória Histórica promoveu a exumação de cadáveres de valas comuns (entre os quais o do poeta Federico Garcia Lorca) e ordenou ao Ministério do Interior a identificação dos dirigentes da Falange Espanhola (um partido político fascista reconhecido durante a ditadura de Franco e tornado ilegal em 1977, embora ainda em actividade) à data dos factos.
Tanto voluntarismo foi considerado excessivo por gente demasiado influente. Por isso, em Maio de 2010, Garzón foi suspenso e foram-lhe instaurados três processos-crime. Um deles acusa-o de abuso de poder na investigação do genocídio cometido por Franco, por alegada violação da Lei da Amnistia, aprovada em 1977 e que impede a Espanha de olhar para o passado de ditadura e julgar os responsáveis pelos crimes cometidos durante esse período.
José Saramago escreveu em Fevereiro de 2010 que “a Lei da Amnistia foi uma maneira hipócrita de tentar virar a página, equiparando as vítimas aos seus verdugos, em nome de um igualmente hipócrita perdão geral”. Mas a questão ultrapassa a esfera da hipocrisia: a ONU interpelou Espanha à revogação da Lei da Amnistia, já que esta viola claramente o direito internacional, que considera estes crimes como crimes de direito internacional e, portanto, não podem ser aplicadas aos seus autores quaisquer amnistias ou indultos, sendo imprescritíveis. Até agora, nada foi feito.
Baltasar Garzón está a ser julgado pela sua bravura, pela sua visão universalista do Direito e, sobretudo, pela sua preocupação com a reparação do sofrimento das vítimas. Se vier a ser condenado, será impedido de exercer funções durante 20 anos – será a morte da sua carreira.
Aconteça o que acontecer, ficarão gravadas as palavras, dirigidas aos filhos, escritas no final do seu livro “Um Mundo sem Medo”: "Queridos Maria e Baltasar: Um mundo sem medo. Será só uma utopia? Um sonho inalcançável? Penso sinceramente que é possível construir um mundo sem medo, ou melhor dizendo, um mundo mais justo. [...] Os direitos humanos não se podem adiar, hipotecar, dissimular, escamotear, distorcer, mutilar ou perverter.”
Publicado ontem, no P3.
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