De românticos e de altruístas todos temos um pouco. Assim como se fossemos uma espécie de membros do Instituto de Socorros a Náufragos da Vida. Só que uns têm as quotas em dia para com a sociedade; outros, preferem olhar para o lado e pensar que os tempos são de crise, que anda meio mundo a tentar enganar o outro meio e que o Estado deve ser a “mão que embala o berço” dos mais desprotegidos.
Deparamo-nos diariamente com mendigos, desgraçados a quem a fortuna da vida lhes virou as costas (ou eles a ela); homens e mulheres que fazem das soleiras dos prédios ou dos bancos de jardim a sua cama, e do álcool e das drogas o seu ponto de fuga para um universo muito próprio. O deles.
Por vezes, a nossa tentação é a de, como que para aliviar a consciência, preencher com uns trocos ou com umas migalhas de comida a mão que se estende à nossa caridade. Outras vezes, voltamos a cara, não querendo ver a triste realidade que está perante nós, como se, assim, este estado de coisas não existisse e aquele que se aproxima de nós não passasse de uma sombra, sem corpo, sem alma, sem vida. É o risco de contágio pela cegueira da “crise”, a desculpa motivada pelos “tempos difíceis” que se avizinham. Sabemos na ponta da língua a velha frase: “se todos ajudarem, não custa tanto”. Mas custa.
Diversos organismos nacionais apontam para que o número de pobres em Portugal ande perto dos dois milhões de pessoas (dados do terceiro trimestre de 2011). Os exemplos entram-nos pelos olhos dentro, dia após dia, noticiário após noticiário… De facto, a televisão é um veículo por excelência para as denúncias dos ultrajes à vida humana, mas, cinicamente, tem a vantagem de nos separar dos miseráveis por um ecrã. Não nos toca na pele. E assim, com maior ou menor consciência, com maior ou menor leviandade, acabamos por fazer letra morta do que está escrito nas primeiras linhas da Declaração Fundamental dos Direitos do Homem: “que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria […]. Na Carta, os povos das Nações […] se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla”.
Há diversas pedras no caminho para se chegar a este ideal. Uma delas é inata na natureza humana: todos temos medo de ser enganados e de, nestes casos, estarmos a contribuir com dinheiro ou com comida para “mais um drogado”, ou para “mais um bêbado de rua”, que mal tem onde cair morto; para um parasita, que vive às custas dos nossos impostos, porque “é um malandro e não quer é trabalhar”. Cometemos bastas vezes um erro crasso – tomamos a nuvem por Juno.
Onde pretendo chegar com tudo isto? Ao homem que, todos os dias vejo nos semáforos da Avenida de França, no Porto, que empunha um simples pedaço de cartão no qual está escrito apenas: “TENHO FOME”. Está ali, parado e mudo, cabeça baixa. Nem sequer se aproxima de quem não se digna a abrir o vidro do carro, quanto mais não seja para dizer “não”. Vejo-o quase todos os dias, ali, parado, de cartaz na mão. Arranco ao sinal verde e ele lá fica. Mas, por incrível que pareça, acompanha-me quase sempre, durante grande parte do resto da minha viagem.
Publicado ontem, no P3.
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