domingo, 16 de janeiro de 2011

O assassino e a vítima

imagem de Mirela Momanu
Seria difícil permanecer, depois de mais de uma semana de atenção mediática ao assunto, em silêncio ao "caso" do assassinato de Carlos Castro. Todos temos as nossas opiniões pessoais sobre o assunto, mais ou menos fundadas, mais ou menos ponderadas. Mas, de todo o modo, isso seria possível, porque são outras "as guerras" que nos movem, são distintos os nossos interesses sobre a actualidade.
Todavia, o que é, para mim, absolutamente impossível e impraticável, é a manutenção da indiferença ao despautério de comentários, opiniões, atoardas e bitaites verdadeiramente homofóbicos, preconceituosos e mesquinhos que, a cada passo, vamos vendo por aí.
Por isso, faço minhas as palavras de Paulo Pinto, que transcrevo.
E com isto, ficamos conversados.

Confesso que foi com um sorriso que recebi o cochicho, há dias, da sua morte. Julguei que estivessem a brincar comigo. Quando percebi que a pessoa que acabara de me dar a notícia não estava a gracejar, o sorriso desapareceu, sobretudo quando ouvi o comentário final: "sim, ia com um puto de 20 anos, já se sabe...". Depois, o espanto e o choque com o caso, as circunstâncias e os pormenores macabros do assassinato. Por fim, a indignação com o processo de lavagem do alegado assassino. Esta lavagem não decorre da existência de dúvidas, suspeitas de encobrimento ou incriminação por terceiros ou, sequer, atenuantes (acidente, legítima defesa, etc.); decorre, tão-somente, do facto de Carlos Castro ser homossexual e de ter uma relação com o alegado assassino. E isto, aos olhos do Portugal de 2011, quase 40 anos depois do 25 de Abril, o país que pertence à Europa Comunitária há mais de 20 e que se considera um farol de humanismo e de tolerância no mundo, é ainda algo que as pessoas não aceitam, não engolem e não perdoam. E que, em última instância, acaba por imputar uma "culpa" e um "merecimento" à vítima.
Já se sabia que os portugueses não são especialmente tolerantes com as diferenças, apesar de toda a prosápia nacionalista que nos inculcou a ideia de sermos abertos, tolerantes e de brandos costumes; e que a homossexualidade, apesar das recentes vitórias no campo político-legislativo, não é coisa facilmente aceite. Não nos devemos deixar, nunca, enganar pela ilusão "legal" e não subestimar o fosso entre legislação e prática. Este caso é particularmente assertivo: um homem foi morto, após espancamento prolongado, e posteriormente alvo de mutilação; era um sexagenário, e o autor do crime, um jovem forte e robusto. Até aqui, nada a apontar. O pormenor que faz toda a diferença é que tinham uma relação, e que um deles era um homossexual assumido. E aqui é que tudo fica, subitamente, transfigurado e o assassino passa miraculosamente a quase-vítima: um jovem bom ("de ouro", como disse a mãe - que queria a imprensa que ela dissesse?), belo, estudioso, "normal", trabalhador, que tinha um sonho de vingar na vida e de fazer carreira de modelo; infelizmente, essa carreira, tortuosa, não era fácil; ter-se-á envolvido com um decano das lides, influente e bem relacionado; viajaram juntos; os amigos deste disse que ele estava "apaixonado". A velha história do "subir na horizontal", tantas vezes propalada, cochichada, intrigada, quando está em causa uma mulher jovem e um homem poderoso, certo? Errado. Porque isso é quando se trata de uma mulher e um homem, ora pois, algo aceite socialmente; entre dois homens é uma abominação, como profere o Levítico.
O aspecto mais interessante, o traço mais relevante desta história horrível é, precisamente, o que envolve o preconceito homofóbico. Digam-me lá, eram dois adultos, certo? A sua relação não estava inquinada por nenhuma "contaminação" externa, digamos, relação laboral, hierarquia de serviço, etc. (segundo algumas informações, foi o jovem Renato Seabra quem procurou o Carlos Castro), correcto? Então porque carga de água é que o cronista de fofocas teve "culpa", "matou o miúdo psicologicamente" ou "estragou a vida ao rapaz"? Eu sei a resposta. É que, no fundo, apesar de toda a apregoada "tolerância", uma boa parte dos portugueses tem ainda uma homofobia latente e entranhada: o Renato foi "corrompido" pelo velho devasso, obrigado, constrangido, chantageado ou simplesmente instigado a actos abomináveis em troca de ajuda na tal carreira de modelo; o que ele fez (matá-lo) não se perdoa, mas compreende-se e desculpa-se (passe a contradição), afinal qualquer homem-que-é-homem reagiria assim (ou deveria) perante um atentado semelhante; os pormenores gore do olho arrancado a saca-rolhas são apenas excessos de um macho ofendido na sua virilidade. Digamos que o Renato estava disposto a muito para subir na carreira, mas há limites para tudo. Há certamente quem pense que o Renato deveria ser libertado e, quem sabe, recompensado, sempre seria uma forma de conter a bicheza que prolifera por aí.
Evidentemente, nada disto estaria em causa se o Castro fosse um velho babado por saias e o Renato, uma cheerleader de formas redondas. Nesse caso, a relação seria apenas mais uma "subida na horizontal" (bocejo!). E se ocorresse um homicídio, ninguém viria em socorro da autora, decerto que seria uma assassina interesseira, uma puta ladra que esteve meses a chular o pobre velhinho apaixonado e iludido e que tentou, decerto, um qualquer "golpe do baú" (provavelmente com um parceiro por trás pois, já cá se sabe, as mulheres não são muito inteligentes) que correu mal. Assim não, é apenas uma história, simultaneamente trágica e moralizante, de "uma vida perdida" de um jovem iludido, um aviso a todos os jovens para não se deixarem seduzir por iguais enganos e a confirmação da "violência da comunidade homossexual" (como o inefável Arroja defendeu, num post que, por pudor, me recuso a indicar), embora o gay é que tenha sido assassinado, mas que interessa isso? No fundo, estava a pedi-las, não estava?