Entretanto, Zaratustra olhava a multidão, e assombrava-se. Depois falava assim:
“O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
O grande do homem é ele ser uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento.
Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são esses os que atravessam de um para outro lado.
Amo os grandes desdenhosos, porque são os grandes adoradores, as setas do desejo ansiosas pela outra margem.
Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra pertença um dia ao Super-homem.
Amo o que vive para conhecer, e que quer conhecer, para que um dia viva o Super-homem, porque assim quer o seu acabamento.
Friedrich Nietzsche, de Edvard Munch (1906) |
Amo o que trabalha e inventa, a fim de exigir uma morada ao Super-homem e preparar para ele a terra, os animais e as plantas, porque assim quer o seu acabamento.
Amo o que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo.
Amo o que não reserva para si uma gota do seu espírito, mas que quer ser inteiramente o espírito da sua virtude, porque assim atravessa a ponte como espírito.
Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o seu destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e deixar de viver.
Amo o que não quer ter demasiadas virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, porque é mais um nó a que se aferra o destino.
Amo o que prodigaliza a sua alma, o que não quer receber agradecimentos nem restitui, porque dá sempre e se não quer preservar.
Amo o que se envergonha de ver cair o dado a seu favor e que pergunta ao ver tal: “Serei um jogador fraudulento?” porque quer submergir-se.
Amo o que solta palavras de ouro perante as suas obras e cumpre sempre com usura o que promete, porque quer perecer.
Amo o que justifica os vindouros e redime os passados, porque quer que o combatam os presentes.
Amo o que castiga o seu Deus, porque ama o seu Deus, pois a cólera do seu Deus o confundirá.
Amo aquele cuja alma é profunda, mesmo na ferida, e ao que pode aniquilar um leve acidente, porque assim de bom grado passará a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda, a ponto de se esquecer de si mesmo e quanto esteja nele, porque assim todas as coisas se farão para sua ruína.
Amo o que tem o espírito e o coração livres, porque assim a sua cabeça apenas serve de entranhas ao seu coração, mas o seu coração, o leva a sucumbir.
Amo todos os que são como gotas pesadas que caem uma a uma da sombria nuvem suspensa sobre os homens, anunciam o relâmpago próximo e desaparecem como anunciadores.
Vede: eu sou um anúncio do raio e uma pesada gota procedente da nuvem; mas este raio chama-se o Super-homem”.
Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, IV parte.
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