quinta-feira, 13 de setembro de 2012

E assim, sem me conhecer, ela fez com que eu me decidisse.

Ontem à noite, o meu filho, antes de se deitar, veio ter comigo e disse-me, com aquele ar gozão que eu conheço tão bem e que ele usa sem se dar conta para atenuar emoções demasiado intensas: "Mãe, estou muito orgulhoso de ti e dos teus amigos marginais que passam a vida a tentar mudar o país."

E eu, tantas vezes preguiçosa, tantas vezes displicente, eu que tantas vezes tenho vivido abaixo das minhas capacidades, eu, que tantas vezes tenho deixado a cozinha por limpar e o carro por aspirar, que tenho deixado textos para escrever amanhã, que tenho até chegado a pensar que mais vale arrumar as botas, eu verifico que nesta simples frase está tudo. Tudo.

O orgulho do meu filho. Da minha filha. Tudo o que eu quero. Tudo o que eu preciso. É por eles que saio à rua. Por eles continuo a levantar-me todas as manhās para trabalhar de olhos fechados num emprego que detesto e que nada tem a ver comigo. Por eles adio o meu sonho vezes sem conta. Por eles cometo a incoerência de prosseguir alimentando um sistema que abomino e que nos está a destruir, a mim, a eles e a ti que me lês, talvez.

Mas ele tem orgulho em mim, muito, foi o que ele disse. E eu orgulho-me que ele se orgulhe de mim. Que mais pode querer uma māe?

Que mais pode querer? Pode querer muito. Pode querer tudo. Menos que isso é desistir do mundo. É desistir da vida. E eu nāo desisto. Há quem queira, quem tudo faça para que eu desista, mas nāo, eu nāo. Os meus filhos merecem o mundo que eu sonhei. Eu mereço o mundo que sonhei. O que me foi prometido. Eles merecem crescer acreditando que vāo ser felizes, como eu cresci. Acreditando que vāo realizar os seus sonhos, como eu cresci. E para isso bater-me-ei todos os dias da minha vida.

Os meus amigos. O Luis que está na prateleira. O Joāo que foi despedido. O Miguel que queria ser actor e que todos os dias afoga a frustraçāo num mar de cerveja.
As minhas amigas. A Sara que está desempregada. A Rita que se mata a trabalhar. A Inês que queria montar um pequeno negócio. A Mariana que está doente e nāo pode parar para se tratar porque se o fizer nāo terá como dar de comer à filha.
Tanto talento, tanta energia desperdiçados. Tanta gente a viver abaixo, abaixo das suas expectativas, abaixo das suas necessidades, abaixo das promessas com que crescemos. Abaixo.

Marginais. É verdade. Somos marginais. Nāo queremos trabalhar. Nāo queremos trabalhar sem os direitos pelos quais morreram os nossos antepassados. Nāo queremos trabalhar até cairmos de exaustāo. Nāo queremos trabalhar até morrermos de velhos sem termos vivido. Nāo queremos trabalhar em ambientes podres, doentes, doentios, que nos cortam as asas, a criatividade, a motivaçāo. Nāo queremos trabalhar a troco de salários miseráveis, nem a troco de talões de supermercado. Nāo queremos trabalhar 60 horas por semana. Nāo queremos trabalhar para criar a riqueza com que os patrões se banqueteiam à nossa conta enquanto nós contamos os cêntimos. Nāo queremos só comida, queremos comida, diversāo e arte, queremos a imaginaçāo ao poder, queremos o descrescimento. Sim, somos marginais. Somos marginais porque pensamos à margem. Somos marginais porque somos mantidos à margem. Marginais porque as margens nos comprimem. Marginais mas nāo violentos. Apenas queremos mudar o país, disse ele. Mudar o mundo. Mudar.

Mudar. Mudar-nos. Mudar para dentro, mudar para fora. Mudar para melhor, porque para pior já basta assim. Mudar porque é possível. Porque é preciso. Porque é urgente. Porque é devido. Sábado saio à rua. Sábado começo a mudar o país. Sábado começo a mudar o mundo. Sábado reclamo a minha vida. A dos meus filhos. A dos meus pais. A dos meus amigos. A tua. Sábado deixo de ser marginal, deixo de ser margem, torno-me rio. Rio de multidāo lutando com a história na māo. Sábado quero encontrar-te. Vens?

da Myriam Zaluar, aqui.



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