segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Um Homem Não Chora

Procuro com a mão o despertador que está a tocar há mais de meio minuto. Encontro-o entre um livro e o copo de água que me colocam todas as noites sobre a mesinha-de-cabeceira. Carrego num botão e o silêncio volta a entrar no meu quarto. Sei que já não posso readormecer. O meu despertador toca invariavelmente às oito de manhã, todos os dias, faça sol ou faça chuva.
É uma das invariáveis da minha vida, tão invariável como o amor da Fernanda, como os jantares de família nos dias santos, como o som do piano da vizinha aos domingos.
Não há nada a fazer. Atiro com a roupa ao chão e procuro, com o pé, o chinelo que deve estar algures ao lado da cama.
Lá fora a cidade começa a ser atacada pela luz, uma luz que não perdoa nada, nem a racha duma parede, nem uma rua mal varrida, nem as rugas nas caras das mulheres. As próprias sombras são atacadas mal saem das coisas e desfazem-se antes de chegar ao chão. Dentro duma hora as últimas sombras da cidade já estarão refugiadas debaixo das árvores da avenida e atrás dos muros mais espessos dos bairros populares.
Começo o dia na casa de banho, em frente do espelho, fazendo a barba com uma gillete nova que me deu a inevitável Fernanda.
Entorto a cara para a direita e para esquerda em frente do espelho e observo, mais uma vez, que sou feio. Não há qualquer razão para que a Fernanda continue a gostar de mim. Por mais que tente não consigo compreendê-la.
Já está! Já me cortei!
Abro a gaveta e procuro, em vão, uma pedra-alúmen que comprei há anos, quando ainda era solteiro. Desapareceu.
Não tenho outro remédio senão limpar o sangue à toalha.
A minha toalha é azul e tem o meu nome bordado. A toalha da Fernanda é cor-de-rosa e tem o nome dela bordado. Pego na toalha e procuro o meu nome. Só agora reparo que a toalha é diferente. É nova, o azul ainda não desbotou. A um canto, em lugar do meu nome, encontro a palavra "dele" bordada a branco. Pego na toalha cor-de-rosa, também nova, que está ao lado da minha. A um canto, também bordada a branco, está a palavra "dela".
Já nem sequer tenho nome! Agora sou "ele", a parte masculina duma quimérica unidade que passa por ser um casal feliz...
Atiro com as duas toalhas para o chão e começo a limpar a cara, sem me esquecer de tirar o sabão que está atrás das orelhas.
O Espelho, René Magritte
Pensando melhor, as toalhas não têm culpa do que se passa. Atirá-las para o chão é infantil. Abaixo-me para as apanhar. Estão na posição em que caíram, muito juntas, envolvidas uma na outra, como se tivessem casado na véspera.
Batem à porta. Já sei quem é.
- Posso entrar?
- Não. Tens de esperar um minuto. Estou na retrete.
A mentira produz o efeito desejado. A porta não se abre. A Fernanda continua lá fora. Sorrio para o espelho. A imagem responde-me da mesma forma. Fico parado a fim de ouvir os passos da Fernanda afastando-se da porta. Não oiço nada. Continua lá fora à espera que eu saia da retrete.
- Já posso entrar?
- Ainda não. É só um momento.
Puxo a corrente do autoclismo para que ela pense que acabo de me levantar.
- Já posso?
- Já.
Atravesso a casa de banho dum salto e mergulho a cabeça no lavatório. Quando ela entrar, já me não pode beijar, porque estou molhado.
Sem olhar para trás, sigo os seus movimentos. Sentou-se na borda da banheira. Prepara-se para me fazer um comunicado. Pelo silêncio, creio que se trata de coisa importante. Terá resolvido que a nossa experiência de dormirmos em quartos separados já deu o que tinha a dar? Quererá voltar para a minha cama?
- Já te esqueceste de que hoje é sexta feira?
- Não. Levantei-me agora mesmo e ainda não tive tempo de me lembrar que hoje é sexta-feira. Porquê? É dia de peixe?
- Já te esqueceste de que tens uma coisa a fazer hoje?
- Espera aí... tenho de almoçar, tenho de jantar, tenho de me deitar... Será alguma coisa destas?
- Não serás capaz, pelo menos uma vez por dia, de tomares as coisas a sério?
- Eu não. E tu?
- Acaba com as brincadeiras. Hoje, às seis horas, é o cocktail dos Simões.
- Tens razão. Peço-te desculpa de me não ter lembrado dum facto tão importante como esse. O cocktail dos Simões vai alterar todo o curso da história da humanidade. Ainda bem que me lembraste. Imagina o que acontecia se eu não fosse...
- Disseste que ias.
- Disse?
- Disseste.
- Isso é grave, mesmo muito grave!
- Vais?
- Não sei. Pode ser que morra, entretanto. Pode ser que tenha um filho. Pode ser que seja atropelado. Até pode acontecer que me apeteça ir...
- Poderias fazer-me o grande favor de me telefonares dizendo se vais ou não vais, para que eu saiba o que devo fazer?
- Mesmo que eu não vá tu podes ir. Não creio que o Simões atente contra a tua vida. Ainda que lhe apeteça, desiste logo que lhe digas que és...
- Que sou o quê?
- Que és minha mulher.
- Não é isso o que tu ias a dizer.
- Mas foi isso o que eu disse.
Abro a porta da casa do banho e saio. Ela vem atrás de mim e entra comigo no quarto. Começo a vestir-me por cima, pela camisa, na esperança de que ela saia antes de eu vestir as calças.
- Vais ou não vais?
- Aonde?
- Ao cocktail dos Simões.
- Não posso. É dia de peixe...
- Desde quando é que te começaste a preocupar com essas coisas?
- Comecei hoje.
- E quanto tempo dura?
- Até amanhã.
- Já agora, diz-me o que tem que ver o cocktail dos Simões com o facto de hoje ser dia de peixe.
- É que nos cocktails há sempre salsichas.
- Tens muita graça.
- Nasci assim.
- Queres tomar alguma coisa antes de saíres?
- Não. O que eu queria era que fosses ver se eu estou lá dentro enquanto visto as calças.
- Não creio que seja necessário. Sou a tua mulher.
- Então deixa-te estar.
Tiro as calças do pijama e visto-me.
Estou pronto.
Saio do quarto e encaminho-me para a porta, seguido pela Fernanda.
- Vais ou não ao cocktail dos Simões?
- Queres que eu vá?
- Quero.
- Então não vou.
Saio de casa com uma sensação de alívio. Paro numa mercearia e compro cem gramas de passas, que meto no bolso. Sigo pela rua a baixo em direccão ao Chiado.
Já prometi à Fernanda, praticamente, tudo que tenho para que ela me deixe em paz. Tenho a certeza de que há-de haver uma solucão para tudo isto. Não pode deixar de haver. Não é possível que, numa época em que se pensa ir à Lua, eu tenha de voltar para casa, para uma mulher de quem não gosto, para uma vida que odeio, para um ambiente que me revolta. Então o homem quer sair do seu planeta quando ainda não conseguiu, sequer, fugir da aldeia em que vive?
Não foram os cães que inventaram os açaimes. Não foram os leões que inventaram os jardins zoológicos. Teriam sido os homens os inventores das leis que os prendem e amarram? As leis foram feitas pelos homens para seu uso próprio. Se lhes não servem, arranjam-se outras que lhes sirvam.

Luís de Sttau Monteiro, Um Homem Não Chora