quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

As Amantes

«brigitte é filha ilegítima de uma mãe que cose com as mesmas linhas de brigitte, a saber, sutiãs e cintas.
heinz é filho legítimo de um camionista de longo curso e de sua esposa, que tinha o privilégio de poder ficar em casa.
apesar desta gritante diferença, b. e h. conheceram-se.
neste caso particular, conhecer-se significa, respectivamente, um querer-deixar-escapar e um não-querer-deixar-escapar, ou agarrar-bem.
heinz aprendeu algo que um dia abrirá as portas do mundo: o ofício de instalador-electricista.
brigitte nunca aprendeu fosse o que fosse.
heinz é qualquer coisa e brigitte não é nada que os outros também não pudessem ser sem qualquer esforço. heinz é insubstituível e frequentemente necessário, por exemplo quando há avarias na corrente, ou quando é preciso um pouco de amor. brigitte é substituível e desnecessária. heinz tem futuro, brigitte nem sequer presente tem.
heinz é tudo para brigitte, o trabalho não é nada para ela, a não ser uma tortura insuportável. uma pessoa que nos ame é tudo. uma pessoa que nos ame e ainda por cima seja alguém é o máximo que brigitte pode alcançar. o trabalho não é nada, porque brigitte já o tem, o amor é superior, porque primeiro é preciso procurá-lo.
brigitte acaba de o encontrar: é heinz.»

Elfriede Jelinek, As Amantes


Qual é o destino de uma operária, ou melhor, como escapar ao destino quando se é uma operária? A forma mais simples é o casamento. Há que escolher com atenção o futuro marido e resistir às tentações do sexo. A amante deve aprender a gerir o seu corpo jovem e atraente, o seu único bem, e não sonhar com o amor ideal dos romances cor-de-rosa. Através do “bom exemplo” de Brigitte e o “mau exemplo” de Paula, Elfriede Jelinek, a iconoclasta, faz voar em estilhaços uma especialidade austríaca: o idílio.
Publicado em 1975, As Amantes tornou-se rapidamente no livro de referência de toda uma geração. Relato lúcido e perturbador sobre a realidade quotidiana, é uma crítica feroz e mordaz à condição da mulher no Ocidente e ao destino ao qual estão condenadas. Paródia do romance cor-de-rosa, escrito com ironia e sarcasmo, simultaneamente subtil e gélida, esta narrativa esventra a vida e os sentimentos de inúmeras mulheres.
[sinopse na badana da capa da tradução portuguesa do livro, publicado em 2006 pela Asa.]


Elfriede Jelinek [...] inscreve-se na tradição literária austríaca junto de grandes e polémicos autores, tais como Karl Kraus e Thomas Bernhard. Tal como eles, foi considerada pornográfica e traidora da pátria, tendo recebido ameaças e visto o seu nome arrastado para a lama. Autora mais do que reconhecida, galardoada com múltiplos prémios literários, não deixou, no entanto, de ser marginalizada. Considerada "degenerada" por parte da sociedade austríaca - supostamente a extrema direita - a condenação recai sobre toda a sua obra, tanto no teatro como na literatura.
Apesar de tudo isto (ou, exactamente por tudo isto) a escritora foi laureada com o prémio Nobel da Literatura em 2004, tendo o comunicado da Academia Sueca destacado "o fluxo musical das vozes e contra-vozes presente nos romances e peças" da autora, que com "extraordinário zelo linguístico", revelam o "absurdo dos clichés da sociedade".
Nascida a 20 de Outubro de 1946 na cidade de Murzzuschlag, na província austríaca de Styria, Elfriede Jelinek é filha de uma mestiçagem cultural e religiosa: a mãe era uma austríaca católica, pertencente a uma família da alta burguesia vienense; o pai, engenheiro químico e autodidacta, era um judeu de origem checa oriundo de um meio pobre, mas culto. [...]
Predestinada pela mãe a transformar-se num génio da música, ingressa em 1950 no jardim de infância de uma instituição religiosa, em Viena, onde, a partir dos 4 anos, estuda ballet e francês. [...] a partir dos 7 anos a mãe obriga-a a frequentar aulas de piano, alto e violino, para além dos estudos habituais na escola primária. Aos 16 anos entra para o Conservatório de Música de Viena. Ingressou igualmente na Universidade de Viena para estudar Teatro e História da Arte. Por fim, esgotada, acaba por adoecer e enfrentar uma grave crise psicológica.
Asfixiada pelo domínio materno, revolta-se contra a autoridade e direcciona a sua atenção para as palavras e a linguagem, uma área descurada pela a mãe, mas estimulada pelo pai. [...]
A partir do final dos anos 60, Elfriede Jelinek publica os seus primeiros textos e poemas, escreve para a rádio e recebe os seus primeiros prémios literários. Em 1970 surge o seu primeiro romance, wir sind lockvogel baby!. É também no início da década de 70 que se casa com Gottfried Hungsberg, passando a viver entre Viena e Munique. Das suas novelas destacam-se Die Liebhaberinnen (1975, As Amantes), Die Ausgesperrten (1980, Os Excluídos) e Die Klavierspielerin (1983, A Pianista), uma autobiografia que esteve na origem do filme de Michael Haneke, em 2001. [...] Um romance perturbante e escandaloso. Não menos escandaloso foi o seu romance seguinte, Lust, que surge em 1989. Lust é ao mesmo tempo o desejo, o gozo, o prazer, "o livro que sempre quis escrever", afirmaria a autora. Um texto pornográfico feminino, uma espécie de anti-história inspirada em George Bataille e Sade.
Extratos da tradução livre e adaptação de texto publicado em Lespetitsruisseaux.com., que pode ser encontrada aqui.