1. Quando um náufrago resiste a todas tentativas de salvamento torna-se difícil salvá-lo. Poucas vezes tive uma convicção tão firme como a que tenho acerca do desastre que o referendo grego representaria para a Europa. Michael Hüther, economista do instituto germânico IW, comparou este passo a um “suicídio por ter medo da morte”. Só que a decisão de cometer suicídio é habitualmente individual. Neste caso concreto o suicida faria 16 reféns. De Maio de 2010 até hoje, Giorgios Papandreou teve oportunidades de sobra para realizar um referendo. Porquê agora? Não me venham com a tese da superioridade da “legitimidade democrática directa” do referendo sobre a legitimidade de um governo eleito democraticamente (sufragado para também tomar medidas difíceis e impopulares, depois de décadas de uma gestão ruinosa do país e de malabarismos financeiros de sucessivos governos).
2. Deixemo-nos de meias palavras: pretender devolver a palavra aos cidadãos sobre o novo plano de resgate, sem ter tido a amabilidade de informar os parceiros comunitários, e poucos dias depois de a Europa ter fechado um difícil acordo, é pouco sério, se formos benevolentes, ou é uma vil chantagem, se deixarmos cair os pudores politicamente corretos. Uma chantagem sobre uma população desesperada chamada a optar entre a peste e cólera, e sobre a Europa, que apesar de todas as hesitações, lançou a Atenas a bóia de salvação. Algo está podre quando se invoca a democracia para mascarar um estratagema de sobrevivência política. Onde estão a solidariedade e a responsabilidade gregas – que os gregos e a Europa em coro exigiram e exigem à chanceler alemã – para com os seus pares europeus? Mas Papandreou deu-se mal. Só chantageia Angela Merkel quem pode, e não quem quer.
3. Há muito, muito tempo, ainda a moeda única não era nascida, um ministro das Finanças alemão – Theo Waigel – disse: ” Der Euro spricht deutsch!”. Os factos – e os desvarios de várias nações do velho continente – encarregaram-se de desmentir o arquitecto do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Com o euro à beira do precipício, Berlim quer que este reaprenda a falar alemão. A lógica da chanceler, é simples: se nos temos de responsabilizar pelos nossos vizinhos, com o dinheiro dos contribuintes alemães, então temos de ter uma palavra a dizer sobre como é gasto. O susto europeu é merecido e até pode vir a ser profilático: só um euro alemão evitará a implosão da moeda única.
4. Vivendo na Alemanha há década e meia e tendo acompanhado de muito perto a ascensão política de Angela Merkel, continuo a ter dificuldades em perscrutar o que a faz mover. Surpreende-me por isso a quantidade de especialistas encartados em matéria “merkeliana” que vejo nos jornais europeus e nos portugueses, em particular. Assombro-me com os editorais exaltados, que se presumem de uma objectividade que não tem e que se limitam a sobrevoar os assuntos à luz dos preconceitos de quem os escreve. Prolifera nalguma opinião publicada um preocupante anti-germanismo alimentado de ressentimentos, tocando nalguns casos a infâmia.
Muito do que se diz e do que se escreve sobre a Alemanha assenta num profundo desconhecimento acerca do país e das enormes transformações que sofreu nos últimos vinte anos. Depois de uma década de apaixonados debates internos sobre a identidade nacional e a memória, que se seguiram à queda do Muro, a Alemanha começou a tomar – cada vez mais – decisões baseadas em considerações domésticas e em interesses económicos globais. Numa Alemanha normal a integração europeia deixou de ser raison d’État. Em vez de pedir tudo e aos berros à Alemanha – mais liderança, mais garantias – seria bom que se fizesse um esforço intelectualmente sério para conhecer e compreender a única potência europeia actual.
Nolens volens será Berlim a determinar o rumo que a Europa irá tomar. Talvez valesse a pena ir pensando no assunto.
Helena Ferro de Gouveia, aqui e aqui.
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