quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Sinfonia da noite inquieta.

imagem de ucilito.
Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas escritas nas pedras negras dos edifícios pesados; as antemanhãs trémulas nas campinas alagadas, pantanosas, húmidas como o ar antes do sol; as vielas, onde tudo é possível, as arcas pesadas nas salas vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta datada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos; o mofo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingarda que ninguém hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes à janela; ninguém na estrada; o sono com sobressaltos; a moléstia que alastra pelas vinhas; sinos; a mágoa claustral de viver… Hora de bênçãos tuas mãos subtis… A carícia nunca vem, a pedra do anel sangra no quase-escuro… Festas de igreja sem crença na alma: a beleza material dos santos toscos e feios, paixões românticas na ideia de tê-las, a maresia, à noite entrada, nos cais da cidade humedecida pelo arrefecer…

Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida sequestra. Longos corredores, e as frestas, janelas fechadas sempre abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas… Nomes de rainhas
antigas… Vitrais onde pintaram condes fortes… A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio pelo ar da igreja concentrado no escuro do chão impenetrável… As mãos secas uma contra a outra.

Os escrúpulos do monge que, no livro antiquíssimo encontra, nos algarismos absurdos, ensinamentos dos magos, e nas estampas decorativas os passos da Iniciação.

Praia ao sol a febre em mim… O mar luzindo a minha angústia na garganta… As velas ao longe e como andam na minha febre… Na febre as escadas para a praia… Calor na brisa fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare tenebrosum — a noite escura lá longe para os argonautas e a minha testa a arder as caravelas primitivas…

Tudo é dos outros, salvo a mágoa de o não ter.

Dá a agulha a mim… Hoje faltam no seio de casa os seus passos pequenos e o não se saber onde ela está metida, tudo o que estará a lavrar com pregas, com cores, com alfinetes. Hoje as suas costuras estão fechadas para sempre em gavetas de correr na cómoda — supérfluas — e não há o calor de braços sonhados à roda do pescoço da mãe.

Bernardo Soares, O Livro do Desassossego.

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