quinta-feira, 18 de novembro de 2010

casa

«O meu esconderijo de eleição sempre foi a minha casa. Nenhuma sensação se assemelha à tranquilidade que me dá, ao final do dia, fazer rodar a chave na fechadura e abrir a porta daquele espaço muito meu, quase sempre submerso em absoluto sossego. Assim que ponho um pé no chão, quase ouço em surdina um ligeiro reboliço, como se as minhas coisas bisbilhotassem entre si o meu ansiado regresso. Gosto da certeza de tornar a casa, da segurança de voltar ao meu ponto de partida.
A minha casa continua a revelar-me, todos os dias, pedacinhos de chão, paredes e tecto que eu, empurrada pela pressa com que os ponteiros percorrem o relógio, nunca tinha tido tempo para ver antes. Cada ladrilho conta-me um segredo, cada rodapé devolve-me à boca o sabor de um beijo roubado, cada esquina por onde passo surpreende-me com uma gargalhada. Quando regresso a casa, todos os dias encontro janelas por abrir.
Em casa sinto-me por dentro de mim. Conheço, mesmo de luz apagada, todos os caminhos que os seus corredores rasgam, veias por onde corre o sangue que a alimenta, que me alimenta. Sei, de olhos fechados, onde fica cada recanto e trago na lembrança tudo o que lá vivi e foi já tanto. Recordo, com nostalgia, alguns dias em que o Sol irradiava lá fora e dentro da minha casa gotejava copiosamente. Há dias em que ainda é assim. A minha casa espreita atentamente a vida pelos meus olhos, vive através de mim.
Certas casas são edifícios mais ou menos imponentes, onde a claridade exterior espreita pelas frestas das portadas entreabertas, namorando os tapetes, os quadros, cada um dos objectos inanimados que repousam sobre os móveis. Às vezes, as casas não passam de paredes de betão armado cobertas de telhas cor-de-laranja, mas nem sempre é assim. Há casas - há algumas poucas casas -, em que as paredes estão forradas a carne e osso e são um par de braços abertos para receber quem nelas entra. Quando entro numa dessas casas faço dela minha e deixo-me ficar lá dentro.
Posso chamar casa ao rio Douro, aos olhos de uma criança de quem não sei sequer o nome, às rugas de um velho calado e cabisbaixo a quem ninguém dá atenção. De qualquer lugar posso fazer a minha casa, desde que o traga comigo na memória. E tenho tantas casas dentro de mim que nem as posso contar.
Ainda que a minha casa esteja vazia, lá dentro nunca me sinto só. Há muitas pessoas que dela nunca partiram, muitos braços que lhe revestem o branco das paredes e me enlaçam de verdade quando a percorro. Sei que, como eu, nunca se irão dali. Sei que sempre me sorrirão quando com elas me cruzar, ainda que não as veja. Aquela casa será sempre o nosso ponto de (re)encontro, não importa os dias que passem.
Em minha casa vivo em muitos mundos, uns reais, outros tantos imaginários. Viajo entre os hemisférios, até aos destinos que são meus, pelo simples toque de qualquer coisa que guardo. E, então, inesperadamente, submergem-me os cheiros das cidades que percorri, inundam-me os ouvidos as vozes e os risos dos estranhos com quem me cruzei. Em casa arrecado o mundo inteiro e, também, um mundo só meu. Em minha casa, todo o mundo é meu e todos os lugares são ali.
A palavra «casa» é feita de gente, tem corpo e alma e um coração que ama. A minha casa é feita de mim e de quem um dia comigo lá quiser morar.»

Marta Madalena Botelho, in a minha palavra favorita, Centro Atlântico, 2007.