sábado, 16 de outubro de 2010

Do Anjo da Fome

«A fome é um objecto.
O anjo subiu até penetrar o juízo.
O anjo da fome não pensa. Pensa correctamente.
Nunca falta.
Sabe dos meus limites e conhece o meu norte.
Conhece as minhas origens e sabe o seu efeito.
Sabia-o antes de me encontrar e conhece o meu futuro.
Pende, como mercúrio, em todos os capilares. Uma doçura no céu-da-boca. Então, a pressão do ar comprimiu o estômago e o tórax. O medo é demasiado.
Tudo se tornou leve.
O anjo da fome caminha de olho aberto só de um lado. Cambaleia em círculos apertados e embala-se no baloiçar do fôlego. Conhece a saudade de casa no juízo e os becos sem saída no ar.
O anjo do ar caminha de fome aberta, pelo outro lado.
Sussurra a si e a mim ao ouvido: Onde se carrega, também se pode descarregar. É feito da mesma carne que ele engana. Que terá enganado.
Conhece o pão de cada um e o pão do rosto alheio e envia à febre a lebre branca.
Diz que volta, mas não vai embora.
Quando chega, chega em força.
A clareza é cristalina:
1 pazada = 1 grama de pão.
A fome é um objecto.»

Herta Müller, citação de um dos capítulos do livro Tudo o que eu tenho trago comigo.

[Um dos meus actuais livros de cabeceira - quem me conhece, sabe que tenho vários começados ao mesmo tempo, por todos os cantos da casa e até fora dela. O romance passa-se durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial e  conta o destino de um jovem, oriundo de uma minoria alemã da Transilvânia, num campo de trabalho russo. Recomendo.]

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