segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A Nau Catrineta


Desde menina convivo com cantilenas e poemas cheios de musicalidade que quase se cantam ao invés de se declamarem. O meu Avô Materno, que possuía uma "memória de elefante", presenteava-nos frequentemente com recitações que, à força de tanto as ouvirmos, também nós já as sabíamos de cor e acompanhávamos em coro.
Muito embora a «Nau Catrineta» não fosse, porventura, das mais frequentes, é-me inevitável, quando a oiço, afastar do pensamento esses serões infantis. E hoje, quem teve direito a ouvi-la, com música e tudo, foi o meu filho, que ia dançando ao som da cantilena.

Lá vem a nau Catrineta
Que tem muito que contar! 
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija
Que a não puderam tragar.
Deitaram sorte à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal.
"Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar".
Acima, acima gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!
"Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar".
-Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar".
- Dar-te-ei tanto dinheiro,
Que o não possas contar.
"Não quero o vosso dinheiro,
Pois vos custou a ganhar!
- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.
"Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar".
-Dar-te-ei a nau Catrineta
Para nela navegar.
"Não quero a nau Catrineta
Que a não sei governar".
Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?
"Capitão, quero a tua alma
Para comigo a levar".
Renego de ti, demónio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus,
O corpo dou eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a nau Catrineta
Estava em terra a varar.

[Trata-se de uma lenda anónima cuja recolha é atribuída a Almeida Garrett. A versão musicada pode ser ouvida aqui.]

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