«A obra mais famosa de toda a literatura portuguesa, traduzida em 37 idiomas, é o "Livro do Desassossego", desse outro eu de Pessoa chamado Bernardo Soares. Um livro perfeito porque imortalmente imperfeito. Sem princípio nem fim, sem leme nem rumo, um livro inclassificável e invisível como os deuses, nascido dos destroços do céu, feito da temperatura das nuvens e dos rasgões da alma - fragmentos contínuos que conjuram a morte e apagam o tempo. Pessoa sabia que o "Livro do Desassossego" o manteria vivo, depois. Permanecemos na memória dos que nos sobrevivem porque não terminámos - sobra sempre o que não chegámos a dizer ou fazer. Somos retalhos de temas, mágoas e iluminações. Não uma colecção de momentos - nesse caso seríamos esquecíveis como fotografias de viagem. Tudo nos empurra hoje para essa ideia de viagem permanente: sofremos um desgosto, gritam-nos que viajemos, para levarmos para longe o nosso problema e não incomodarmos o rame-rame alheio. Momento - eis o que chamamos às nossas grandezas e às nossas falhas, a essa descontinuidade anímica, agora tão em moda. O "Livro do Desassossego" é o antilivro de viagem: Pessoa chegou ao âmago do Universo sem sair de Lisboa.
O "Livro do Desassossego" tem silêncio, ruído, tédio, sexo, angústia, felicidade. Abrimos uma página ao acaso e encontramo-nos lá inteiros, tenhamos 16 ou 30 ou 70 anos. Porque Pessoa realizou essa que é a viagem difícil, pouco praticada e muito desaconselhada: pôr-se no lugar dos outros. Ser cada um dos outros. Toda a identidade advém dessa viagem dura, ousada, que é a da entrega radical: não há outra.
Não há uma ordem no livro como não há uma história na nossa vida: há nós de dor e de prazer que vêm e vão, como ondas de um mar imprevisível, e encontros desencontrados que se potenciam fora de toda a lógica das historinhas que somos instruídos para seguir. Uma vida não é uma história nem um conjunto de histórias - nunca tem um fim, deixa sempre pontas penduradas, sonhos a rodar na cabeça dos sobreviventes. As histórias parecem mudar pouco e repetir-se muito porque raramente são vividas na sua intensidade. É essa a tarefa da arte - de qualquer arte: buscar mais verdade, uma luz mais exacta, sob o horizonte da verdade visível. O resto é treta, empate, bufonaria de quem foge de entender a mensagem da cova e do caixão.
Eduardo Lourenço afirmou que Pessoa se tornou a "máquina de rezar" da cultura portuguesa - e, em simultâneo, maior do que Portugal. João Botelho ousou criar o filme impossível a partir deste livro impossível que se tornou o mais real dos livros portugueses - o mais lido, o mais amado, o mais inspirador. E o "Filme do Desassossego" soube honrar o livro que lhe deu vida: arrastou o texto para o futuro que é ainda o seu território de origem, criando um Bernardo Soares fora do tempo e fazendo de Lisboa a cidade de todas as cidades, com prédios e monumentos cubisticamente empilhados, substituindo-se ao céu - e com vadios, boémios, funcionários tristes, casais, crianças, mulheres intensas, fadistas, a voz de Caetano Veloso (que criou uma canção para o filme) nas entranhas do metro, Lula Pena, Carminho e Ricardo Ribeiro cantando na rua - e Catarina Wallenstein, numa interpretação sublime, encarnando um texto que nos fala dos passos que deve seguir "quem faz do sonho a vida".
Nunca Lisboa foi filmada de um modo tão inesquecível. Cada imagem de João Botelho é uma pintura - ele filma como Caravaggio pinta, com o mesmo conhecimento carnal da densidade das luzes e das sombras, e neste filme essa semelhança é potenciada pela subtil e intensa paleta do rosto e do corpo de Cláudio Silva. Mas não caiu no engodo fácil de fazer um filme 'bonitinho', desvirtuando o vendaval lúcido e alucinado que é o livro de Pessoa.
A Floresta do Alheamento de Bernardo Soares transfigura-se numa ópera dramática (de Eurico Carrapatoso) encenada em plena serra de Sintra - ou não fosse Fernando Pessoa o rei da nossa Baviera, tema sobre o qual Eduardo Lourenço escreveu um livro prodigioso. Este filme desassossega-nos coração, cabeça e estômago, obriga-nos a pensar tudo de novo e a chorar o velho nada das lágrimas reprimidas - ou seja, a sermos mais livres. É para isso que servem a literatura, a música e o cinema.»
Inês Pedrosa
[Texto publicado na edição da Única de 25 de Setembro de 2010, mas lido aqui]
O "Livro do Desassossego" tem silêncio, ruído, tédio, sexo, angústia, felicidade. Abrimos uma página ao acaso e encontramo-nos lá inteiros, tenhamos 16 ou 30 ou 70 anos. Porque Pessoa realizou essa que é a viagem difícil, pouco praticada e muito desaconselhada: pôr-se no lugar dos outros. Ser cada um dos outros. Toda a identidade advém dessa viagem dura, ousada, que é a da entrega radical: não há outra.
Não há uma ordem no livro como não há uma história na nossa vida: há nós de dor e de prazer que vêm e vão, como ondas de um mar imprevisível, e encontros desencontrados que se potenciam fora de toda a lógica das historinhas que somos instruídos para seguir. Uma vida não é uma história nem um conjunto de histórias - nunca tem um fim, deixa sempre pontas penduradas, sonhos a rodar na cabeça dos sobreviventes. As histórias parecem mudar pouco e repetir-se muito porque raramente são vividas na sua intensidade. É essa a tarefa da arte - de qualquer arte: buscar mais verdade, uma luz mais exacta, sob o horizonte da verdade visível. O resto é treta, empate, bufonaria de quem foge de entender a mensagem da cova e do caixão.
Eduardo Lourenço afirmou que Pessoa se tornou a "máquina de rezar" da cultura portuguesa - e, em simultâneo, maior do que Portugal. João Botelho ousou criar o filme impossível a partir deste livro impossível que se tornou o mais real dos livros portugueses - o mais lido, o mais amado, o mais inspirador. E o "Filme do Desassossego" soube honrar o livro que lhe deu vida: arrastou o texto para o futuro que é ainda o seu território de origem, criando um Bernardo Soares fora do tempo e fazendo de Lisboa a cidade de todas as cidades, com prédios e monumentos cubisticamente empilhados, substituindo-se ao céu - e com vadios, boémios, funcionários tristes, casais, crianças, mulheres intensas, fadistas, a voz de Caetano Veloso (que criou uma canção para o filme) nas entranhas do metro, Lula Pena, Carminho e Ricardo Ribeiro cantando na rua - e Catarina Wallenstein, numa interpretação sublime, encarnando um texto que nos fala dos passos que deve seguir "quem faz do sonho a vida".
Nunca Lisboa foi filmada de um modo tão inesquecível. Cada imagem de João Botelho é uma pintura - ele filma como Caravaggio pinta, com o mesmo conhecimento carnal da densidade das luzes e das sombras, e neste filme essa semelhança é potenciada pela subtil e intensa paleta do rosto e do corpo de Cláudio Silva. Mas não caiu no engodo fácil de fazer um filme 'bonitinho', desvirtuando o vendaval lúcido e alucinado que é o livro de Pessoa.
A Floresta do Alheamento de Bernardo Soares transfigura-se numa ópera dramática (de Eurico Carrapatoso) encenada em plena serra de Sintra - ou não fosse Fernando Pessoa o rei da nossa Baviera, tema sobre o qual Eduardo Lourenço escreveu um livro prodigioso. Este filme desassossega-nos coração, cabeça e estômago, obriga-nos a pensar tudo de novo e a chorar o velho nada das lágrimas reprimidas - ou seja, a sermos mais livres. É para isso que servem a literatura, a música e o cinema.»
Inês Pedrosa
[Texto publicado na edição da Única de 25 de Setembro de 2010, mas lido aqui]
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