sábado, 16 de outubro de 2010

Pietà

«Sentamo-nos os dois. O frio, perpendicular, abafa qualquer comiseração. Sempre vagabundos de nós, tudo nos falta menos a rua. Esta noite um som ecoa, a luz, acre, levanta o peso do calor, e eu não sabia, calada e não refeita, de seu sono vigilante que já não me pertence. No quarto anterior, dormias em meu ventre, hoje o tronco firme recusa um qualquer sincronismo com o meu desejo. Somos luz, porém, caminho idêntico e diverso, o que atrai e repele, breve hesitação a minha, a de quem transporta o recém-nascido a um ritmo novo.
Se eu chamar tua voz para meu lado, arranco a flor mutilada à superfície da água. Mas teu labor é nocturno, ponto instável, díspar; a dúvida, uma interrogação insidiosa. Era um segredo, o nosso amor lento, corpo que nos cerra e mais tarde se extingue. Se espreito, o menino morre. Fecho então os olhos, e aprendo a ler sobre o texto o longo breve rio entre ti e o outro, o sentido da inverosimilhança, a ausência radical e lisa. Vou envelhecer tentando segurar a maternidade no peito.»

Ana Marques Gastão

La Pietà, de Michelangelo

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