sábado, 16 de outubro de 2010

Não Tenho Tempo

Sabes, meu filho, até hoje não tive tempo para brincar contigo.
Arranjei tempo para tudo, menos para te ver crescer.
Nunca joguei contigo dominó, damas, xadrez, ou batalha naval.
Eu percebo que tu me procuras, mas sabes meu filho,
eu sou muito importante e não tenho tempo.

Sou importante para números, convites sociais
e toda uma série de compromissos inadiáveis.
Como largar tudo isto, para ir brincar contigo?
Não, não, tenho tempo.

Um dia trouxeste o teu caderno escolar para eu ver
e ficaste ao meu lado. Lembras-te?
Não te dei atenção e continuei a ler o jornal.
Porque afinal, afinal os problemas Internacionais
são mais sérios do que os da minha casa.
Nunca vi os teus livros não conheço a tua professora.
Nem me lembro qual foi a tua primeira palavra.
Mas, tu sabes, eu não tenho tempo.

De que adianta saber as mínimas coisas a teu respeito,
se eu lenho outras grandes coisas a saber.
É incrível: como tu cresceste! Estás tão alto!
Nem tinha reparado nisso
Aliás, eu quase que não reparo em nada.
E, na vida agitada, quando tenho tempo, prefiro usá-lo lá fora,
porque aqui fico calado diante da televisão.
Porquê? Porque a televisão é importante e informa-me muito.
Sabes, meu filho, a última vez que tive tempo para ti,
foi numa noite de amor com a tua mãe.
Eu sei que tu te queixas eu sei que tu sentes a falta duma palavra,
duma pergunta amiga, duma brincadeira, dum chuto na tua bola.
Mas eu não tenho tempo.

Eu sei que sentes a falta de um abraço e de um sorriso, de um passeio a pé,
de ir até ao quiosque, ao fundo da rua, comprar um Jornal, uma revista.
Mas sabes há quanto tempo eu não ando a pé na rua?
Não tenho tempo.

Mas tu entendes, eu sou um homem importante.
Tenho de dar atenção a muita gente, eu dependo delas.
Meu filho, tu não entendes nada de comércio.
Na realidade eu sou um homem sem tempo.

Eu sei que tu ficas triste porque as poucas vezes que falamos,
é um monólogo: Só eu é que falo.
Eu quero silêncio.
Quero sossego e tu tens a péssima mania de querer brincar com a gente.
Tens a mania de saltar para os braços dos outros.
Filho, eu não tenho tempo para te abraçar.
Não tenho tempo para conversas e brincadeiras de crianças.
Filho, o que é que tu percebes de computadores,
comunicação, cibernética, racionalismo?
Tu sabes quem é Descartes e Kant?
Como é que eu vou parar para falar contigo?
Sabes, filho, não tenho tempo.

Mas o pior de tudo, o pior de tudo é que se tu morresses agora,
já neste instante, eu ficava com um peso na consciência.
Porque, até hoje, até hoje não arranjei tempo para brincar contigo.
E, na outra vida, Deus não terá tempo de me deixar pelo menos, ver-te.

Neidar de Barros

[poema tornado famoso pela magistral recitação de Víctor de Sousa.]

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